sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

SOBRE O ATO DE ESCREVER...

FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
O fim do ano se aproxima; além das Festas Natalinas e da celebração da passagem, muitos projetos começam a ser delineados. No campo da pesquisa acadêmica, alguns colegas preocupam-se com publicações. Para estes uma boa parte do plano nasce do anseio de escreverem textos e artigos para contagem de produção bibliográfica. Assim, um dos temas dos diálogos é sobre o ato de escrever, mesclado com votos de paz e realizações, ao lado de um desejo recôndito de que a escrita seja fluente, fácil e produtiva.
Decidi então falar sobre a escrita. Para tanto, socorro-me inicialmente de Raduan Nassar, que, numa comemoração aos 30 anos de seu livroLavoura arcaica, pronunciou lições inspiradoras, algumas das quais tomo a liberdade de reproduzir:
Enquanto escrevi, era movido por uma paixão pela literatura. Eu gostava muito das palavras de ir ao dicionário consultar um verbete, isso me dava um prazer enorme... Ao escrever, eu não partia de pressupostos teóricos. Sempre achei que cada escritor, seja ele prosador ou poeta, tem de fazer o que lhe dá na telha, buscando referências na vida. É fundamental esse vínculo da literatura com a pulsação da vida... O lado bom de se fazer literatura é fazê-la na mesa de trabalho. As melhores recompensas que um escritor tem acontecem lá, a repercussão é outra coisa. Se ele estiver satisfeito atendendo seus próprios critérios, isso basta.
Maravilhoso ensinamento que não se aplica somente à literatura. O escritor trabalha e realiza-se ao escrever. É o ato de escrever que explica porque ele escreve.
Ao escrever, o escritor vincula-se com a pulsação da vida e esse vínculo move e alimenta sua literatura. O ato de escrever, enquanto se escreve, fornece o elemento pulsional (prazer) para se manter escrevendo. Não é propriamente o resultado final que mais importa. O produto final não possui importância em si mesmo, não é uma mercadoria, o que importa é a plenitude de sentimento que liga o escritor ao ato de escrever.
É escrever que dá prazer. É criar da folha (e na folha) em branco um conjunto de palavras que apresentem um quadro mental belo, saboroso e reflexivo que fornece a substância do escrever. Para se tornar e ser escritor é preciso amar aquele momento silencioso, na mesa de trabalho, em que se desenha um quadro colorido apenas com as palavras.
A trieb freudiana do escrever, se me for permitida essa apropriação, não é ver a obra pronta, não é a obra em si, mas é o próprio ato de escrever. O impulso do escritor não é o exame de seu trabalho pronto, embora seja este o registro de sua sensação, mas o verdadeiro impulso reside no ato, exclusivamente no ato de escrever. É, ao escrever, que o escritor descarrega o pulso ou o desejo que o produziu.
Parece-me que isto implica ter antes uma idéia, um estudo, uma experiência ou uma reflexão a produzir. Esta idéia torna-se um pulso, um desejo, uma vontade que só se realiza no ato de escrever. O trabalho final é a modificação no mundo da pulsão de escrever, enquanto escrever é a realização ou a modificação espiritual do desejo que se traduz no próprio ato.
Sempre haverá uma diferença entre a criação (produção criativa) e a produção técnica (artigos, teses, textos e peças) porque na primeira o escritor é movido pela pulsão pura, no sentido de se realizar no próprio ato da escrita. Na segunda, o escritor pretende ter um trabalho realizado. Para conseguir a segunda, penso que o escritor precisa aprender e conseguir se apaixonar, concretizar um elo de desejo sobre o tema para poder escrever.
Ou, se não for assim, deve, ao escrever, perceber que de alguma maneira, mesmo não tendo interesse total sobre o tema, a produção de seu texto, enquanto produção escrita, gera algum prazer, no sentido de alcançar algum desejo, que não é instrumental (produzir o trabalho), mas é pessoal em escrever aquele trabalho e, durante a realização do texto, encontrar a própria realização na prática da escrita. Ou seja, mesmo que o tema não seja tão atraente, o escritor o reconhece como um meio de instigação para a escrita e o escrever será o fundamento de seu trabalho, será seu prazer, será seu impulso.
Talvez este seja o motivo porque alguns colegas da academia encontram dificuldades para escrever seus trabalhos. Ou não conseguem se ligar ao tema, ou, se o conseguem, não se ligam ao ato de escrever como prazeroso enquanto tal. Culpam-se porque poderiam estar fazendo outra coisa e não encontram prazer em escrever por escrever.

*** João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. Especialista em direito penal, pós-graduado em filosofia e mestre em filosofia do direito, foi delegado de Polícia e coordenador da Assessoria Jurídica da Febem. Atualmente é membro efetivo da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP, além de professor assistente e coordenador de núcleo de pesquisa da PUC-SP.

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