segunda-feira, 17 de maio de 2010

TOMANDO DECISÕES E BEBENDO VINHOS...

FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
Meu final de semana está sendo dos bons. Degustar vinhos é, falemos a verdade, tarefa das mais complicadas, para não dizer complexa. Não dominamos a arte, no entanto, volta e meia, olhando pro lado, deparamo-nos com os que sabem tanto quanto nós – nada – fazendo caras e bocas e expressando sensações lidas em jornal ou revistas de etiqueta; destilam prazeres que lá no fundinho do fundinho da honestidade da alma não existem e nunca existiram.
Percorrer o Vale dos Vinhedos, entre Garibaldi e Bento Gonçalves – aqui no Rio Grande do Sul – é um privilégio a ser vivido.
No balcão de degustação, a perplexidade de decidir. Qual o melhor? O quê faz a diferença no paladar? O mais adequado? O prazeroso? Após as explicações e racionalidades sobre vinhos e espumantes, resta tão-somente a sensação do bom e do ruim, do agradável e do desagradável, o ganho e a perda. Nada mais do que isso.
A questão resume-se na tomada da decisão: escolher entre o bom e o ruim, o caro e o barato, o preço honesto, o mais razoável para o deleite e para a carteira. Quais as explicações seriam suficientes para convencer minha mulher acerca da “melhor” escolha e, portanto, definindo a questão sobre o porquê desta garrafa e não aquel’outra.
Pensando bem, este o problema central do direito: decidir. O que é esse processo? Que racionalidade encerra? E como a escolha pode ser compreendida e, portanto, legitimada por aquele que a recebe para, de acordo com ela, conduzir-se, sob pena de tornar-se um infrator ou fora-da-lei?
Na verdade, decidir, dentro de um determinado ordenamento jurídico, não é agir livremente. É submeter-se a uma série de regramentos impeditivos do “livre” exercício de desejos e quereres. Vamos adstritos a um sistema estabelecido por uma ordenação política do conviver social, produto do sistema representativo. Este é o pressuposto da modernidade: a Lei, o Direito, e os que decidem sobre o que seja a Lei e o Direito. São institutos constituídos por um modo de expressão de vontades políticas concretizados no palco dos parlamentos e dos tribunais. Então, a complexidade da sociedade impõe a decisão, a definição final para cada questão apresentada ao Estado como ente único legitimado para o exercício da violência legal (Weber).
Decidir é assim, só escolho um caminho porque poderia ter ido por outro. Absolvo porque posso condenar, defino o legal, a partir de uma concepção do ilegal, tomo à esquerda, porque tenho a opção pela direita. A análise destas hipóteses, dos caminhos possíveis de decisão, é o que a teoria dos sistemas (Luhman) vai nominar de complexidade. Decidir é escolha redutora de complexidades que nos permite construir o futuro como tempo histórico e dinâmico.
Na verdade, o movimento dos atores sociais em seus respectivos sistemas somente é possível pelo processo de tomada de decisões, ou seja, pela ação concretizada a partir das escolhas que fazemos num ou noutro momento da caminhada pela vida. O sistema jurídico interage com outros tantos sistemas (ou subsistemas): o econômico, o político, o midiático, o educacional, etc. As escolhas feitas dentro do “mundo do direito” não se bastam e não se devem bastar. Suas escolhas se comunicam com o mundo “externo”; não se esgota em si mesmo, como o “mundo dos juristas” quer fazer parecer. Na expressão de Habermas, “o mundo da vida” é o ambiente próprio para a tomada de decisões humanas.
Então por que falar em vinhos e decisão? Por que falar em coisas aparentemente tão distintas? Não sendo chato e já sendo: a votação do STF no tema da lei de anistia mostra exatamente o dilema, o paradoxo do jurista enfurnado no seu “mundo jurídico”. Quando se decide pelo sim, é pela evidência de que o não seria uma decisão possível. Quando se diz, como disse Eros Grau, que o STF não poderia examinar a Lei de Anistia, quando disse que o STF não poderia atribuir um sentido àquela lei, é porque somente o Supremo pode atribuir sentido ao ordenamento jurídico e a ela poderia ter dado o sentido pretendido por uma parcela importante da sociedade atual. O STF decidiu, fez uma escolha, e o sentido por ele atribuído ao ordenamento fincou-se no passado longínquo, convalidando a autoanistia e negando o “mundo da vida” vivido por nós outros.
Então, passear pelo Vale dos Vinhedos é meter-se na complexidade da decisão, da escolha. Há momentos em que a melhor espumante perde-se numa taça contaminada por vinho fermentado com açúcares artificiais, posto no lugar errado, na hora errada. Má fé de quem não lavou ou não trocou a taça para a nova degustação? Nunca! Incúria, puro descuido. Mas esta bobeada levou por terra anos e anos de uma trabalhosa preparação que pretendia, simplesmente, oferecer um bom sabor e pequenos momentos de prazer para quem a viesse sorver.

*** Ricardo Giuliani Neto é advogado em Porto Alegre, mestre e doutor em direito e professor de Teoria Geral do Direito na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Sócio proprietário do Variani, Giuliani e Advogados Associados e autor dos livros "O devido processo e o direito devido: Estado, processo e Constituição" (Editora Veraz), "Imaginário, Poder e Estado - Reflexões sobre o Sujeito, a Política e a Esfera Pública" e "Pedaços de Reflexão Pública – Andanças pelo torto do Direito e da Política" (ambos da Editora Verbo Jurídico).

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