A cena é clássica: o indivíduo começa a se comportar de maneira diferente,
a luz e o barulho parecem estar nas alturas e o incômodo é tão forte que a
única solução é escapar para um lugar escuro, deitar e esperar a dor passar. Os
ataques de enxaqueca,
tão tristemente famosos quanto misteriosos, são causados por uma lista longa de
fatores, das mudanças bruscas de temperatura ao esforço físico.
“O
cérebro de quem sofre com a doença é mais sensível a estímulos e desequilíbrios
que normalmente não afetam outras pessoas”, resume Fernando Kowacs,
neurologista que coordena o Departamento de Cefaleia da Academia Brasileira de Neurologia. Com a sensibilidade aguçada, para essa turma até um
simples lanchinho pode dar origem ao suplício. “Estudos mostram que entre 12 e
60% dos enxaquecosos relatam ter episódios após consumir determinado alimento”,
comenta Laís Bhering, nutricionista da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
Para entender melhor como uma coisa está ligada
a outra, pesquisadores da Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos, revisaram mais de 180 estudos sobre o
impacto do menu na dor de cabeça. Eles concluíram que a associação é forte a
ponto de justificar uma mudança na abordagem do tratamento. “Atualmente, o foco
está nas medicações, mas deveria incluir mais as dietas preventivas e os
hábitos alimentares de cada um”, aponta Vincent Martin, médico da instituição
americana e um dos autores do trabalho.
A
extensa investigação sugere dois caminhos para que as refeições passem de vilãs
a coadjuvantes no combate à doença. Primeiro, evitar os ingredientes-gatilho (conheça os principais abaixo),
tática que já é utilizada nos consultórios. O passo seguinte é priorizar uma
alimentação que espante novas ocorrências.
O
problema nessa história é que não dá apenas para dizer que aquela taça de vinho
ou o sanduíche do final de semana sejam com certeza os causadores do incômodo.
“O fato de um grande número de pessoas ter enxaqueca depois de comer
determinado alimento não quer dizer que isso ocorrerá com todo mundo. Os
fatores que disparam o problema são muito individuais”, destaca Norma Fleming,
neurologista e membro da Sociedade
Brasileira para Estudo da Dor Crônica.
Portanto, melhor é descobrir o que faz mal antes de adotar um cardápio
específico.
Mesmo
porque até itens saudáveis, como castanhas, frutas cítricas e banana-nanica, podem desencadear crises em sujeitos sensíveis. Ainda
não se sabe muito bem por que isso ocorre, mas a teoria mais aceita diz que
algumas substâncias desses e de outros quitutes estimulariam além da conta o
sistema trigeminal, conjunto de nervos que recobre parte dos vasos sanguíneos
da cabeça. “Com a sensibilização excessiva, a própria dilatação promovida pelo
sangue circulando incomodaria, daí a dor pulsante”, desvenda José Geraldo
Speciali, da USP
de Ribeirão Preto.
Como
não há suspeitos únicos para todos os casos, restrições agressivas estão fora
de cogitação antes de uma confirmação sobre os motivos por trás do distúrbio. O
trabalho americano analisou, por exemplo, a retirada do glúten das garfadas e
viu que a proibição só evitava cefaleia em portadores de doença celíaca, que
não toleram a proteína de jeito nenhum.
Já
os regimes que proíbem carboidratos geram polêmica. Embora o cérebro dependa da
glicose obtida dessas moléculas para trabalhar direito, há indícios de que sua
limitação seja benéfica para os enxaquecosos. “Para compensar a falta, o
organismo usa gordura para produzir corpos cetônicos, uma espécie de
substituto, que teria efeito preventivo”, aponta Martin. “Mas esse tipo de
regime é perigoso. Só deve ser adotado por recomendação médica e demanda
monitoramento constante”, avisa.
Se
por um lado o cardápio não deve ser alterado bruscamente, por outro há
nutrientes que trazem, sim, alívio nesse cenário angustiante. O ômega-3, gordura do bem presente no azeite e nos peixes, é
precioso aqui em razão do seu efeito anti-inflamatório — suspeita-se que a
enxaqueca seja financiada pela abundância de moléculas inflamatórias em
circulação. Na mesma linha de pensamento, perder peso e fazer atividades
físicas ajudam porque o excesso de gordura financia a inflamação — e o
exercício aumenta a tolerância às fontes do estorvo. Encher o prato de
vegetais, ricos em antioxidantes, também tem efeito protetor nesse sentido.
Para
encontrar o vilão, só mesmo ficando bem atento ao que não cai bem. “Se o
incômodo ocorre três em cada quatro vezes que você ingere aquilo, é bem
provável que esse seja um gatilho importante”, explica Martin. E isso não quer
dizer que é comeu, doeu. “O mal-estar se manifesta até 48 horas depois da
refeição”, complementa Laís. Uma das táticas recomendadas pelos experts é
manter um diário da dor, no qual cada episódio é anotado junto com os hábitos
alimentares, de sono e ansiedade — que são outros fatores intimamente
ligados à cefaleia.
Aliás,
é importante vigiar os demais cúmplices dessa encrenca (confira alguns abaixo), que
é considerada pela Organização Mundial da Saúde a sexta doença mais incapacitante no planeta. O limite do
organismo ultrassensível não é preestabelecido. “O sistema límbico, que
controla nossas emoções, está envolvido no surgimento da dor. Logo, se
estivermos mais ansiosos ou cansados, há um risco maior de o alimento fazer
mal”, esclarece Norma Fleming. Seja como for, o ideal é procurar um
especialista para descartar outras doenças e apurar por que enxaquecas mal
resolvidas podem virar crônicas. Daí, o buraco é mais embaixo — e merece outra
reportagem.
Café.
Ele
e o cérebro vivem uma relação quase sempre de amor. Tanto é que, na maioria das
vezes, é a falta de cafeína que causa panes — aliás, ela até está presente
em vários analgésicos justamente por potencializar a ação de alguns princípios
ativos. “Quem toma a bebida diariamente pode sentir desconforto depois de mais
de 24 horas sem nenhuma dose”, explica Vincent Martin.
Nesse
contexto, se experimenta literalmente uma crise de abstinência. “Se for o caso,
uma xícara no começo do episódio até alivia um pouco”, ensina José Geraldo
Speciali, neurologista da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto.
Por
outro lado, o exagero faz mal especialmente aos pouco habituados, mas não só a
eles. “Beber quantidades maiores do que 400 miligramas por dia aumenta o risco
de a ansiedade aparecer mesmo se a pessoa estiver acostumada, o que piora a
enxaqueca”, completa o médico. Os especialistas recomendam que o consumo fique
em no máximo três xícaras por dia. Vale lembrar que há cafeína também nos
refrigerantes, suplementos de academia e em outras bebidas.
Realçadores de sabor.
O
aditivo alimentar mais associado ao transtorno é o glutamato monossódico. A
substância tem vocação natural para atuar na massa encefálica. “O que se
acredita é que a presença dele excita o sistema nervoso, ocasionando a dor”,
detalha Laís, da UFMG.
No
entanto, o ácido glutâmico, a base desse ingrediente, está presente
naturalmente em alimentos como carnes, queijos e alguns legumes. Por isso, é
difícil dizer se é ele mesmo o culpado. Parece que a encrenca se dá com a
versão feita em laboratório e encontrada em congelados, no molho de soja e em
outros industrializados. Ah, o estudo da Universidade de Cincinnati mostrou que
há uma variante mais perigosa desse item. “Sua absorção aumenta quando ele está
diluído em preparos líquidos”, destaca Vincent Martin.
Salaminhos e companhia.
Aqui
o culpado é outro composto químico: o nitrito, usado para preservar a cor
rosada e dar sabor curado e defumado ao bacon, à salsicha e a embutidos em
geral. Em excesso, ele favorece a vasodilatação, o que não é ruim — a
menos que você esteja entre os 15% dos brasileiros que têm enxaqueca.
Nesse
grupo, o relaxamento dos vasos quando o sangue passa causa dor porque as
terminações nervosas que recobrem esses caminhos estão hipersensíveis. Aí
qualquer onda é percebida como um tsunami. “Mas vale esclarecer que a
vasodilatação é precedida por outros fenômenos e não é a causa em si do
problema”, diferencia Kowacs. “Agora, a influência do nitrito sobre outras
substâncias pode ocasionar uma crise até seis horas depois de ele ser
ingerido”, completa.
Álcool.
Não
é preciso nenhum estudo para perceber que a bebedeira bagunça a cabeça. Por
isso, vale aqui uma diferenciação. Há a dor da ressaca, causada pela
desidratação e por outros efeitos do abuso de álcool no organismo, e há a
enxaqueca disparada por drinques específicos, quando basta uma dose para
estragar a happy hour.
Nesse quesito, o campeão é o vinho tinto, cheio de moléculas benéficas para as artérias, mas
disparadoras de dor para alguns azarados. E, diferentemente do que muita gente
pensa, não é a qualidade ou a origem da bebida que fazem estrago.
“Um
estudo já comparou as queixas depois de goles de rótulos nacionais e importados
e viu que mais gente reclamava após tomar o vinho francês”, conta Kowacs. Também,
entram no rol inglório de perturbadoras da paz cerebral a vodca, a cerveja e
outras bebidas fermentadas. “Parece haver uma ação das aminas presentes no
líquido em alguns neurotransmissores envolvidos no desenvolvimento da crise”,
aponta Laís. Nesse caso, não tem muita solução a não ser cortar as taças da
rotina até que o problema esteja sob controle. Já para evitar a dor de cabeça
comum, a dica é tomar água entre as doses e não brindar de barriga vazia
— além de beber com moderação, sempre.
Chocolate.
Eis
um clássico na lista. É que o cacau contém teobromina, substância com efeito
estimulante e vasodilatador também encontrada no vinho tinto — e algumas
pessoas são sensíveis a ela. O chocolate branco até tem essa molécula, mas em
menores quantidades. E há ainda uma associação curiosa nessa história: o desejo
incontrolável pelo doce. “Muitos dizem que o chocolate foi o estopim, mas na
verdade a própria fissura já é um sinal do comportamento alterado que precede a
crise de enxaqueca em 60% dos casos”, decifra Kowacs.
A
fase que antecede o sofrimento é chamada de pródromo e começa até dois dias
antes da dor em si. Além da vontade intensa, durante esse tempo é normal sentir
alterações de humor, como irritabilidade, euforia e picos de energia, sem
contar perrengues como enjoo. O quadro ainda está sendo investigado pela
ciência, mas já se sabe que provoca alterações no hipotálamo — importante
região do cérebro que comanda a resposta emocional ao metabolismo — e
diminui o nível de alguns neurotransmissores.
Queijos.
Embora
os gordurosos levem a fama, qualquer variedade é capaz de ofender o sistema
nervoso dos mais suscetíveis. “Como são derivados lácteos, todos os queijos
possuem componentes que servem de gatilho à dor, a exemplo de proteínas grandes
demais para serem digeridas e potencialmente alergênicas”, diz Laís. Nos
organismos mais sensíveis, essas proteínas são confundidas com agentes
agressores e atacadas pelas defesas do corpo, numa reação em cadeia que leva ao
desconforto.
Mas
a balança pesa mesmo para os tipos mais calóricos, caso do gorgonzola e do
parmesão, e os curados e envelhecidos. “Ainda não temos muitos estudos sobre os
mecanismos desse processo, mas parece que a própria gordura, presente em
maiores quantidades, favoreceria o ataque”, completa a nutricionista. Sem
contar que o queijo tem tiramina, componente encontrado em outros itens desta
lista negra como o… vinho!
Outros fatores que abalam a cuca.
Jejum
A
fome e a sede dão dor de cabeça mesmo em quem não sofre com a enxaqueca. E pelo
motivo mais óbvio: a falta de combustível para o cérebro.
Sono.
As
poucas horas de descanso refletem no dia seguinte, mas até o excesso de tempo
na cama pode bagunçar o coreto. O ideal é manter a rotina.
Ambiente.
Cheiros
fortes ou mesmo bem específicos, como certo perfume, claridade, luzes coloridas
e muito barulho também entram na lista.
Estresse.
É batata: se a tensão está em alta, não há dieta que dê conta de aliviar a dor.
Não é à toa que ele é considerado o principal desencadeante das crises.
Doenças.
O
médico precisa ser consultado sempre para descartar outros males que têm a
cefaleia como sintoma, a exemplo de derrames, meningite e até tumores.
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