“No início, eu usava apenas a unha. Hoje em dia, eu
utilizo todo objeto pontiagudo que estiver ao meu alcance: estilete, tesoura,
alicate, pinça, agulha. Eu simplesmente tenho que arranjar um jeito de arrancar
aquele pelo encravado na perna, aquela espinha no rosto ou qualquer coisa que
esteja me incomodando independente das consequências”.
O relato é da arquiteta *Maria
Carolina, de 32 anos, portadora do transtorno de escoriação, doença
caracterizada pelo hábito repetitivo e sem controle de cutucar a pele. “Os
pacientes que sofrem desse transtorno tentam evitar ou interromper os
episódios, mas não conseguem. Eles costumam se beliscar, escoriar, espremer ou
coçar a pele usando a unha, os dentes ou objetos”, explica Elen de Oliveira,
psiquiatra e uma das coordenadoras da equipe do transtorno de escoriação do
Programa Ambulatorial dos Transtornos dos Impulsos (PRO-AMITI) do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.
“Não há uma
causa exata da doença, mas alguns estudos sugerem que os portadores são
perfeccionistas, têm dificuldade em planejar tarefas, tendem a criar metas
irreais e possuem uma expectativa de produtividade o tempo todo”, comenta
Daniel Gulassa, psicólogo e também coordenador da equipe que trata o transtorno
no PRO-AMITI. Outro aspecto comum a essas pessoas é que elas não conseguem
lidar com as próprias emoções, sendo o comportamento repetitivo uma tentativa
frustrada de regular sentimentos negativos. Os gatilhos para as crises são:
estresse, tédio, ansiedade, insatisfação com a aparência e solidão.
Há portadores que se cutucam até
dormindo.
Ao se cutucar, alguns pacientes relatam dor, mas a
sensação principal é a de alívio e prazer, seguida de arrependimento. Alguns
iniciam a escoriação de forma consciente e chegam a ficar mais de duas horas no
processo. Outros não se dão conta e se cutucam quando estão lendo, assistindo
TV ou até dormindo, afirmam os especialistas.
“Meus pais notam quando eu me tranco no banheiro.
Eles sabem que esse é o momento que eu entro no meu ‘mundo paralelo de arrancar
tudo que acho que está errado’. Gostaria que as pessoas não julgassem e
entendessem que não é de propósito, não é algo que eu consiga controlar”,
desabafa *Maria Carolina, que já ficou com as unhas inflamadas e sangrando pela
compulsão em cutucar as cutículas dos pés e das mãos.
“Preciso maquiar minhas pernas
por causa das manchas”.
As lesões provocadas na pele podem evoluir para
úlceras, infecções e cicatrizes, e levam a maioria dos portadores a gastar
tempo e dinheiro na tentativa de cobrir os machucados. Isso inclui o uso de
curativos, cosméticos, acessórios e maquiagem. Alguns chegam a se submeter a
procedimentos dermatológicos ou a cirurgias corretivas. “Preciso maquiar minha
perna por causa das manchas toda vez que uso shorts, saias e vestidos. Tenho
vergonha de usar essas roupas”, diz *Maria Carolina.
Os prejuízos decorrentes do transtorno de
escoriação são inúmeros, de acordo com a médica Elen. Na vida afetiva, muitos
evitam ter relações íntimas. No trabalho, esses indivíduos afirmam não conseguirem
crescer profissionalmente. Na vida social, eles se esquivam de eventos a fim de
fugir da curiosidade e do julgamento das pessoas em relação ao seu
comportamento e feridas.
Diagnóstico.
Segundo estudos, a doença se inicia na adolescência
e acomete predominantemente o gênero feminino, com uma incidência de 1 a 5% da
população geral. Para ser diagnosticado, é preciso preencher os cinco critérios
indicados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).
São eles: beliscar a pele resultando em lesão visível; tentar e não conseguir
cessar a escoriação; sofrer ou ter alguma área social da vida prejudicada
decorrente do ato de beliscar; o comportamento não deve ocorrer devido aos
efeitos fisiológicos de alguma substância, como o uso de cocaína, ou por outra
condição médica; e por último, a ação de beliscar não pode ser em decorrência
de outro transtorno mental, na intenção de causar mal a si mesmo na autolesão
não suicida ou por um delírio causado por um quadro psicótico.
Tratamento.
De acordo com o psicólogo Daniel, o tratamento mais
indicado para o transtorno é a psicoterapia associada ou não a medicamentos,
onde o portador aprende a lidar com os sintomas do comportamento escoriativo, e
também passa a observar como ele se relaciona com suas emoções e seu corpo.
“Não trabalhamos com a ideia de cura, mas de controle, pois o indivíduo pode
reconquistar uma vida sem os prejuízos que a doença acarreta”, conclui.
* O nome foi trocado a pedido da entrevistada.
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