Para os cristãos, a
quaresma é o período litúrgico de preparação para a Páscoa. Ela é uma época de
viver de forma simples, praticar o jejum, a abstinência, a reflexão espiritual
e a penitência. Mas, também é o período de trocar o Big Mac por
um McFish. Mesmo que peixe, teoricamente, também seja carne.
A tradição de não comer
carne nas sextas-feiras da quaresma vem para “honrar” o sacrifício que Cristo fez.
A maioria dos cristãos associa a data aos 40 dias que Jesus passou em jejum no
deserto, sendo atormentado pelo demônio, antes de começar sua vida pública e se
apresentar como um profeta de Deus.
Na verdade, a duração
da Quaresma nem está diretamente ligada a isso: ela é baseada na simbologia que
o número quarenta possui na Bíblia — quarenta dias do dilúvio, quarenta anos de
peregrinação do povo judeu pelo deserto, quarenta dias e Moisés e de Elias na
montanha, 400 anos que durou o exílio dos judeus no Egito, etc.
Desde a antiguidade, a
carne vermelha foi símbolo de opulência e celebração. Por isso, consumi-la
durante a Quaresma não faz jus às práticas humildes desta época. Mesmo assim,
isso não responde por que apenas carnes vermelhas e aves são proibidas,
enquanto peixe é liberado. E é aqui que entram Paulo e São Tomás de Aquino.
As explicações
religiosas.
Na primeira carta de
Paulo aos Coríntios, ele escreveu: “Nem todas as carnes são iguais: uma
é a dos homens e outra a dos animais; a das aves difere da dos peixes” (15:39).
A distinção foi
possivelmente tirada das próprias restrições alimentares do judaísmo, que
separam os próprios peixes em dois grupos, de “permitido” e “proibido”. O peixe
para a dieta judaica só é um alimento considerado “limpo” e adequado se tiver
barbatanas e escamas – é o caso do atum e do salmão, mas não de tubarões,
bagres e enguias, por exemplo. Entre os bichos terrestres, a regra é que o
bicho seja ruminante e tenha os cascos fendidos em duas partes. Então vale
carne de vaca, mas não de porco… Nem de camelo. Nem de coelho.
Mas nada disso tinha
ligação com a quaresma, em si. Vamos então ao século XIII, quando a separação
de carne vs. peixe se estabeleceu de vez. São
Tomás de Aquino dá outra explicação, em seu texto “Suma Teológica II”. Segundo ele,
a regra tinha a ver… com evitar prazer e sexo (!).
“O jejum foi instituído
pela Igreja a fim de refrear as concupiscências da carne, que consideram os
prazeres do toque em relação à comida e ao sexo. Portanto, a Igreja proibiu
aqueles que jejuam de comer alimentos que proporcionam mais prazer ao paladar
(…) e que seu consumo resulta em um maior excedente de matéria seminal, que
quando abundante se torna um grande incentivo à luxúria.”
Tradução: eles
acreditavam que comer refeições mais “parrudas”, com carne vermelha, não só
eram mais gostosas, como aumentavam a produção masculina de sêmen. E esse
aumento levaria a uma libido maior (o que, vale lembrar não é
verdade, não é ciência, era apenas o entendimento religioso da época).
Mas não só as carnes
vermelhas foram proibidas. São Tomás de Aquino adverte que o frango também
proporciona prazer, já que também é um animal de “sangue quente” e da terra,
diferenciando-se do peixe.
Flexibilização
das crenças — e carnes.
Apesar dessas
explicações, há quem acredite que, na verdade, essa restrição veio de
interesses particulares do Vaticano, grande proprietário de comércios
marítimos. E eles flexibilizaram as regras ao longo dos anos, de acordo com
determinadas conveniências.
No século XVII, o bispo
do Quebec decidiu que os castores eram peixes. Em vários dos
nosso vizinhos da América Latina, não há problema em comer capivara —aparentemente
também um “mamífero aquático” para a Igreja — nas sextas-feiras da Quaresma. E,
em 2010, o arcebispo de Nova Orleans deu positivo a carne de jacaré quando
declarou: “O jacaré é da família dos peixes”.
E essas restrições na
dieta só se aplicam aos cristãos católicos: graças ao rei Henrique VIII e a
Martinho Lutero, os protestantes não precisam se preocupar com o bacalhau do
domingo. Quando Henrique reinou, o peixe era um dos pratos mais populares da
Inglaterra. Mas quando ele se separou da Igreja Católica, consumir peixe nesse
período se tornou uma declaração política pró-católica.
Os anglicanos e os
simpatizantes do rei, então, faziam questão de comer carne nas sextas-feiras da
Quaresma.
Na mesma época,
Martinho Lutero declarou que o jejum dependia do indivíduo, não da Igreja. Mas
essas atitudes prejudicaram bastante o setor pesqueiro da Inglaterra. Em 1547,
o filho de Henrique, o rei Eduardo VI tentou restabelecer o jejum de carne para
melhorar a economia do país – pelo menos para os peixeiros. Alguns anglicanos
até retomaram a prática, mas os protestantes nunca morderam totalmente a isca.
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