FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
Um jornal universitário da escola da farmácia da USP, a título de fazer humor, ofereceu ingressos grátis a uma festa para quem jogasse fezes em dois alunos que se beijaram. Pode-se dizer que exerceram seu direito à livre expressão, incitando o “enfezamento” contra os que se beijam.
Uma situação que sempre me fustigou o espírito é porque tanta energia ainda tem de se gastar para se defender valores tão evidentes quanto o da livre expressão. Posso compreender reações humanas legítimas contra notícias distorcidas, por exemplo. A notícia como texto se pretende um relato de um fato, logo, sujeito ao valor ético da imparcialidade. É um discurso descritivo que, como tal, no dizer do mestre Lourival Vilanova, tem por fim “coincidir com a realidade”.
Na notícia distorcida, o produtor da informação usa de sua condição para produzir no espírito do receptor da informação um dado Juízo pelo primeiro pretendido, usando para tanto de uma fraude informativa. Ora, neste caso, reações de contrariedade sempre me pareceram justificáveis. Quem se põe no papel social de informar, assume uma ética própria dessa tarefa e seu descuramento proposital é falta grave.
Mas, francamente, sempre me pareceram obscurantistas contrariedades contra o direito de opinião de alguém. Ao opinar, expressamos um juízo subjetivo, uma verdade que não se pretende universal, ou, caso se pretenda universal, apresentamos argumentos que podem ou não serem aceitos, mas não têm o condão de obrigar ou constranger alguém, a não ser pelo livre convencimento. Não compreendo contrariedades contra opiniões, salvo por seu conteúdo. Razoável se divergir delas, mas irrazoável procurar-se suprimir o direito de alguém em emiti-las.
Se o caráter autônomo das opiniões me subtraem o direito de querer reprimir o direito de emiti-las, o que se dizer dos afetos? O que pode ofender a alguém em um simples beijo entre enamorados num local público, mas cujos hábitos sociais permitam tal expressão? Num culto religioso talvez tal conduta ofenda, mas numa praça no meio de uma universidade, com luzes e aromas de fim de tarde, aqueles fins de tarde nos quais o que se considera importante no duro viver da rotina de trabalho parece tão desimportante naquele momento fugaz, o que um beijo pode trazer de ofensa? E mais, ofensa ao ponto de se rogar pela agressão física aos que se beijam, pedidos de que se lhe joguem fezes!
O fato de serem dois homens se beijando altera tanto assim a natureza do ato? Se não sou o homem beijado, o que pode me ofender tanto numa expressão de afeto ao ponto de me sentir ofendido por ela desejando agredir fisicamente os que se beijam?
Provavelmente, psicanalistas explicarão que tal conduta ofende os que sentem a força de seu próprio desejo reprimido, querem agredir, liquidar fisicamente aqueles que praticam um ato que o ofendido deseja imensamente praticar, mas seus mecanismos de repressão íntima não permitem. Os que não desejam beijar uma pessoa do mesmo sexo, ou os que não vivem uma existência tão auto-reprimida, não sentem incômodo íntimo algum, aquele é um momento dos enamorados, não deles transeuntes. Algo que não pertence a suas emoções.
Não sou psicanalista. Sou só um mero advogado. Como tal, já postulei nesta coluna em outras ocasiões que, a meu ver, o direito a livre expressão afetiva integra o direito a livre expressão humana, da qual o pensamento é mera espécie, e como tal ambos são garantidos por nossa Constituição, desde que realizados nos limites que lhe são inerentes, a partir da ponderação com outros valores de nossa ordem.
Pregar violência contra atos de afeto já é algo que, de plano, me causa indignação. Temos tanta violência para tão pouco afeto no mundo contemporâneo, que, mais que as leis, uma sabedoria no viver nos recomenda tolerância com tais expressões.
Inacreditável que tal forma de intolerância ocorra numa universidade da relevância da USP. Os alunos que lá estudam o fazem a custo de todos nós, devem procurar observar em suas condutas intersubjetivas os valores de tolerância e democráticos que nossas normas determinam, quando não muito como préstimo à sociedade que lhes paga os estudos.
Não falo aqui no plano jurídico apenas, acho mais relevante o debate ético com esta juventude equivocada que, nesse aspecto, demonstra ainda ter muito o que aprender. Que usem seu direito à livre expressão de ideias de um modo mais tolerante. Sou contra a polícia do espírito que se transformou o “politicamente correto”, mas ofensas à liberdade de terceiros devem ser contidas, afinal, é assim que se garante a nossa própria liberdade.
*** Pedro Estevam Serrano é advogado, sócio do escritório Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano e Renault advogados associados, mestre e doutor em direito do Estado pela PUC-SP, professor de direito constitucional, fundamentos de direito público e prática forense de direito do Estado da Faculdade de Direito da PUC-SP, bem como do curso de especialização em direito administrativo da pós-graduação (latu sensu) da mesma faculdade. É ex-procurador do Estado de São Paulo, ex-secretário de assuntos jurídicos da prefeitura municipal de São Bernardo do Campo. Autor de diversos artigos na área de direito constitucional e administrativo publicados em revistas especializadas, tendo proferido diversas palestras sobre temas inerentes à área. Autor da obra "O Desvio de Poder na Função Legislativa" (editora FTD) e "Região Metropolitana e seu regime constitucional" (editora Verbatim). Coautor da obra “Dez Anos de Constituição” (ditora IBDC).
Uma situação que sempre me fustigou o espírito é porque tanta energia ainda tem de se gastar para se defender valores tão evidentes quanto o da livre expressão. Posso compreender reações humanas legítimas contra notícias distorcidas, por exemplo. A notícia como texto se pretende um relato de um fato, logo, sujeito ao valor ético da imparcialidade. É um discurso descritivo que, como tal, no dizer do mestre Lourival Vilanova, tem por fim “coincidir com a realidade”.
Na notícia distorcida, o produtor da informação usa de sua condição para produzir no espírito do receptor da informação um dado Juízo pelo primeiro pretendido, usando para tanto de uma fraude informativa. Ora, neste caso, reações de contrariedade sempre me pareceram justificáveis. Quem se põe no papel social de informar, assume uma ética própria dessa tarefa e seu descuramento proposital é falta grave.
Mas, francamente, sempre me pareceram obscurantistas contrariedades contra o direito de opinião de alguém. Ao opinar, expressamos um juízo subjetivo, uma verdade que não se pretende universal, ou, caso se pretenda universal, apresentamos argumentos que podem ou não serem aceitos, mas não têm o condão de obrigar ou constranger alguém, a não ser pelo livre convencimento. Não compreendo contrariedades contra opiniões, salvo por seu conteúdo. Razoável se divergir delas, mas irrazoável procurar-se suprimir o direito de alguém em emiti-las.
Se o caráter autônomo das opiniões me subtraem o direito de querer reprimir o direito de emiti-las, o que se dizer dos afetos? O que pode ofender a alguém em um simples beijo entre enamorados num local público, mas cujos hábitos sociais permitam tal expressão? Num culto religioso talvez tal conduta ofenda, mas numa praça no meio de uma universidade, com luzes e aromas de fim de tarde, aqueles fins de tarde nos quais o que se considera importante no duro viver da rotina de trabalho parece tão desimportante naquele momento fugaz, o que um beijo pode trazer de ofensa? E mais, ofensa ao ponto de se rogar pela agressão física aos que se beijam, pedidos de que se lhe joguem fezes!
O fato de serem dois homens se beijando altera tanto assim a natureza do ato? Se não sou o homem beijado, o que pode me ofender tanto numa expressão de afeto ao ponto de me sentir ofendido por ela desejando agredir fisicamente os que se beijam?
Provavelmente, psicanalistas explicarão que tal conduta ofende os que sentem a força de seu próprio desejo reprimido, querem agredir, liquidar fisicamente aqueles que praticam um ato que o ofendido deseja imensamente praticar, mas seus mecanismos de repressão íntima não permitem. Os que não desejam beijar uma pessoa do mesmo sexo, ou os que não vivem uma existência tão auto-reprimida, não sentem incômodo íntimo algum, aquele é um momento dos enamorados, não deles transeuntes. Algo que não pertence a suas emoções.
Não sou psicanalista. Sou só um mero advogado. Como tal, já postulei nesta coluna em outras ocasiões que, a meu ver, o direito a livre expressão afetiva integra o direito a livre expressão humana, da qual o pensamento é mera espécie, e como tal ambos são garantidos por nossa Constituição, desde que realizados nos limites que lhe são inerentes, a partir da ponderação com outros valores de nossa ordem.
Pregar violência contra atos de afeto já é algo que, de plano, me causa indignação. Temos tanta violência para tão pouco afeto no mundo contemporâneo, que, mais que as leis, uma sabedoria no viver nos recomenda tolerância com tais expressões.
Inacreditável que tal forma de intolerância ocorra numa universidade da relevância da USP. Os alunos que lá estudam o fazem a custo de todos nós, devem procurar observar em suas condutas intersubjetivas os valores de tolerância e democráticos que nossas normas determinam, quando não muito como préstimo à sociedade que lhes paga os estudos.
Não falo aqui no plano jurídico apenas, acho mais relevante o debate ético com esta juventude equivocada que, nesse aspecto, demonstra ainda ter muito o que aprender. Que usem seu direito à livre expressão de ideias de um modo mais tolerante. Sou contra a polícia do espírito que se transformou o “politicamente correto”, mas ofensas à liberdade de terceiros devem ser contidas, afinal, é assim que se garante a nossa própria liberdade.
*** Pedro Estevam Serrano é advogado, sócio do escritório Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano e Renault advogados associados, mestre e doutor em direito do Estado pela PUC-SP, professor de direito constitucional, fundamentos de direito público e prática forense de direito do Estado da Faculdade de Direito da PUC-SP, bem como do curso de especialização em direito administrativo da pós-graduação (latu sensu) da mesma faculdade. É ex-procurador do Estado de São Paulo, ex-secretário de assuntos jurídicos da prefeitura municipal de São Bernardo do Campo. Autor de diversos artigos na área de direito constitucional e administrativo publicados em revistas especializadas, tendo proferido diversas palestras sobre temas inerentes à área. Autor da obra "O Desvio de Poder na Função Legislativa" (editora FTD) e "Região Metropolitana e seu regime constitucional" (editora Verbatim). Coautor da obra “Dez Anos de Constituição” (ditora IBDC).
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