quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A VIDA POR UM CRACK, ODILÉ 55...

Dormia como todos os dias os que dormem na rua dormem. Contar os dias, pra quê? Simplesmente os dormia. Na perambulação do entardecer definia o ritmo do andar e no mesmo itinerário de todos os entardeceres levava consigo as pedras do consumo diário. Umas guardadas já dentro de si como formigueiro comendo o corpo inteiro, outras, embrulhadinhas em papelotes bem escondidos nos bolsos maltrapilhos, mas, para as pedras, sempre zelosos e cumpridores das disfunções humanas.

Pelas andanças sobrava um olha aí, daí rapaz?, eu já me vou, e já se ia para ocupar a Rua do Odilé, marquise 55. Ali, se desapetrechava. No carrinho de mercado, furtado num quase descuido seu — não o havia visto de valde pro lado de fora do muro do super —, trazia seus despertences. Um corbertor de algodão rude, cinza como obeiral do edifício que o abraçava todas as noites, jornais novinhos em folhapra mode forrar os borzeguins companheiros de lá se sabe quanto, e com jornal novinho?, então, que venha a noite, quentura só.


No fundo do carregador, a espiriteira de esquentar as sobras sortidas da perambulança diária, perdida como as pedras do dia. O desafio primeiro era comprar nacos de rocha branca, depois... ganhar sobras e, se houvesse alcool, querosene, gasolina, enfim, qualquer coisa capaz de fazer fogo, comeria, saciaria laricas e o estômago desemburacaria como o cérebro esfumaçado. Pouco se importava, as misérias seriam comidas dojeito que fosse e, como fosse, bucho cheio empanturra de sono e acalma o pensamento.

Andava com o tempero dos que não tem tempo pra chegar. Importava-lhe que, dum modo ou doutro, chegaria no 55 da Rua Odilé. A reserva estava feita, como hotel de granfino; ficam sempre nos mesmos lugares, pedem sempreas mesmas coisas, sempre oferecem as mesmas gorjetas. Sua reserva estava lá, junto com todas as manhas.

Conheceu ali o parceiro de tantos pernoites e com ele botava pra fora histórias do dia vivido e, de quando em vez, não se aguentava e dava uma passadinha na história nem tão remota. Relembrava do pai, irmãos, o pai que foi e o que tinha deixado de ser. Contava caminhos sempre com o olhar no balanço das estrelas que se vinham aos poucos furando o céu para seapresentarem como abajures pitipoá, nesgas de luz desordenadas, e por mais quefugisse delas, na retina as mantinha cravadas.


Mesmo nas noites de breu sentia estrelas imaginárias, abajures pitipoána coberta negra das noites de vento e de assombração. Nestes momentos as lembranças corriam amplas, abriam-lhe o peito e tudo contava pro parceiro de aba gris, no 55 da Rua Odilé.

Arrumava os jornais na forma de pequenas naves e os enfiava para dentro dos borzeguins, cobrindo-lhes a sola inteira; duas camadas eramsuficientes para aguentar o frio que viesse. Na liturgia daquela noite deixaraa canela a mostra e, entre um conto e outro, percebeu-lhe o parceiro a longa cicatriz nunca antes vista. As mentes voavam adornadas pela fumaça da maldita pedra.


A droga não impunha limites nem ordem nos perguntares. Tudo contrastava nos responderes. Sim, corte grande foi este, foi de quando inda tinha vida inteira, tinha coisas e bens, é do tempo da matéria e da afeição. Isso aqui me deu dias e dias de hospital, botaram platina pra segurar o osso. Tava na fumaça e caí da moto, sangue e osso exposto. Botaram ferros e pinos, platina... carrego aqui.

A noite já ia longe e os dois parceiros afundados no 55 da Odilé. Passaram-se horas e as pedras reservadas pra noite faziam efeito e se aprontavam para fazerem falta. A maldita não tinha hora para requerer favores. O parceiro atormentado e sem níquel pra sustentar o vício chorava pela possibilidade da sobrevida; as imagens e os caminhos vinham azulados, como a pedra gris da maquise da Odilé, número 55.


A platina!, sim a platina!, lampejou-lhe a ideia. As assombrações da noite escura e a vida pra inda ser vivida montavam o monstro. A platina formou-se em pesadelo e solução, e a mente sofrida vivia no já não pensante.

O rasgo foi seco. Não houve a doçura do deslize na navalha afiada. Rasgo dilascerante pelo sem-fio de faca inventada. A jugular jorrava a vida pra fora do quase morto e os parceiros grudados como quem sempre grudou-se na Odilé 55, banhavam-se de sangue arrancado.
Nem bem a vida se ia e o rasgo correu pra perna, nem bem morto se punha, e o grotesco rasgava a carne, rompia o osso para esfumaçar a consciência. Não havia mais nada além do pedaço de vida quinda sobrava, nada além de um bocado de platina.

Na manhã do outro dia, estampava o jornal: “Sangue na Rua Odilé. morador de rua mata parceiro de marquise. Na Rua Odilé, número 55, foi encontrado um homem morto e, junto a ele, havia uma perna decepada. O assassino, preso horas depois, confessou ter arrancado a perna do amigo para retirar a platina implantada, para vender e comprar Crack.
Isso aconteceu no Brasil da semana passada. Tirando a perna, a platina e o morto, o resto é invenção minha.

*** Ricardo Giuliani Neto é advogado em Porto Alegre, mestre e doutor em direito e professor de Teoria Geral do Direito na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Sócio proprietário do Variani, Giuliani e Advogados Associados e autor dos livros "O devido processo e o direito devido: Estado, processo e Constituição" (Editora Veraz), "Imaginário, Poder e Estado - Reflexões sobre o Sujeito, a Política e a Esfera Pública" e "Pedaços de Reflexão Pública – Andanças pelo torto do Direito e da Política" (ambos da Editora Verbo Jurídico).

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