As raízes da criminalidade precisam ser examinadas hoje por modelo que retrate a complexidade da dinâmica moderna de sociedade e leve em conta elementos relacionados entre si não mais estaticamente, como pretendia a criminologia tradicional, cuja perspectiva era ver o criminoso como ser irracional, ou seja, sujeito distante da racionalidade comum a todos os demais seres sociais.
O novo modelo de criminologia – que pode ser denominado complexo – necessita retratar o ser humano sob sua dimensão de ser vivente integral, dotado de razão, mas que pode praticar ações as mais irracionais e é influenciado e construído pelo meio em que vive, não como “vítima” da sociedade, mas como resultado de forças que nela existem.
Significa isto ampliar os horizontes no sentido de não justificar somente a criminalidade com base na idéia de pobreza ou ausência de educação, num primeiro momento. Estes também são fatores, mas não isolados. Não há fatores isolados.
Para se buscar esse modelo, tenta-se examinar o que se pode chamar de dinâmica social, seu mecanismo de funcionamento e como essa mesma dinâmica pode indesejavelmente contribuir na alimentação de condutas delitivas.
Deve-se partir da análise da estrutura da sociedade como complexo de forças, as quais formam processo sintético de interferência recíproca, imperceptível em termos diários.
No mundo moderno, no qual predomina um modelo capitalista de natureza consumista, os projetos individuais são lastreados no desejo de possuir bens de consumo. Todos os integrantes da sociedade são, de um modo ou outro, influenciados em sua vida por este fluxo dialético entre desejo e bens. Todos aspiram e adquirem bens, independentemente da classe a que pertençam e os bens são produzidos para atender necessidades de classes distintas.
Os cidadãos que obtêm recursos por canais socialmente adequados o fazem de maneira considerada lícita e, logo, normal. Aqueles que não têm espaço para manutenção de vida chamada normal, não conseguem se integrar no tecido social, acabam sendo empurrados para outra esfera, a da chamada informalidade.
Direcionados para atividades informais, acabam por adquirir bens também por vias da mesma natureza. Neste ambiente informal de trabalho e produção, são criadas regras próprias de convívio social e o conjunto destas regras faz surgir uma sociedade paralela.
Dentro desta, as condutas reiteradas tornam-se práticas habituais e induzem ao nascimento de uma “cultura” da informalidade, na qual também são estabelecidos valores próprios. No momento em que é estabelecida esta cultura, o movimento dialético da informalidade se consolida e caminha em paralelo ao sistema político estabelecido pelo Estado.
O ponto fundamental é que dentre as atividades praticadas, algumas não são ilegais no sentido de constituírem crime, mas outras sim. E é exatamente aqui que, na sociedade moderna, nasce o problema, pois o crime participa como colaborador da estruturação do sistema informal descrito, uma vez que a atividade criminosa acaba por ser lucrativa, gerando uma economia própria e retroalimentando essa estrutura social paralela.
Assim, tal dinâmica social sustenta a formação e a manutenção da criminalidade e não apenas a pobreza ou a ausência de educação. É uma estrutura complexa – e não fatores isolados – que compõe a criminalidade moderna, a qual, por sua vez, se consolida no momento em que, no dinamismo social, as regras estabelecidas numa prática informal e criminosa terminam por se reproduzir num sistema cultural, estabelecendo principalmente valores – um “ethos criminoso”, o qual permanece latente, até o despertar da prática criminosa, a qual se torna visível somente quando o delito apresenta alguma forma de repercussão.
*** João Ibaixe Jr. é advogado criminalista e escritor. Pós-graduado em Filosofia e Mestre em Direito. Foi delegado de Polícia e assessor jurídico da Febem, atual Fundação Casa. É presidente do CEADJUS (Centro de Estudos Avançados em Direito e Justiça) e edita o blog "Por dentro da lei - um espaço para a construção da consciência de cidadania".
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