FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
No dia 15 de junho de 2010 a “Folha de S. Paulo” (p. C1), seguindo o estereotipado estilo do populismo penal, deu esta manchete: “Estupradores usam nova lei para reduzir tempo na prisão”. Em seguida se lia: “Lei uniu crimes de atentado violento ao pudor e estupro, permitindo responder por apenas um deles. Já há vários casos de redução de pena pelo país; é tragédia jurídica, dizem promotores e membros do Judiciário”.
A deputada Maria do Rosário (PT-RS), relatora da lei, disse que a interpretação dos juízes está errada. “Se a pessoa pratica só conjunção carnal, ela vai ter pena de reclusão de seis anos. Se ela pratica coito anal, relação sexual oral, vários coitos, várias conjunções, a pena é a mesma. Isso acaba servindo de estímulo” (juiz Ulysses de Oliveira Gonçalves Júnior). No dia seguinte —e isso é a glória do jornalismo engajado com o populismo pena—, sua repercussão é imediata: “Senado avalia mudar nova lei do estupro”.
Quando a mídia dramatiza, espetaculariza, o parlamento imediatamente ecoa. O legislador, que perdeu completamente sua autoridade, em virtude do seu envolvimento com tantas falcatruas, nepotismos, patrimonialismos etc., já não consegue reagir de forma racional e independente. Seu discurso se apresenta, quase sempre, como apêndice da mídia. Essa é uma das partes mais visíveis da engrenagem do populismo penal.
A questão polêmica é a seguinte: o sujeito, no mesmo contexto fático, constrange a mesma vítima (uma mulher), mediante violência ou grave ameaça, e mantém com ela tanto conjunção carnal como coito anal. Esse “fato”, esse contexto fático único contra a mesma vítima, constitui crime único (CP, artigo 213, com a redação dada pela Lei 12.015/2009) ou uma pluralidade de crimes (concurso de crimes)?
Antes do advento da Lei 12.015/2009, os fatos narrados estavam previstos em dois tipos penais: artigo 213 (conjunção carnal) e artigo 214 do CP (coito anal, ou seja, ato libidinoso diverso da conjunção carnal). A jurisprudência majoritária entendia haver nesse caso concurso materialde crimes (JSTF 301/461), isto é, dois crimes autônomos e independentes, com penas somadas. Não se tratava de conduta única, logo, impossível era reconhecer o concurso formal. Mais: considerando-se que os dois delitos achavam-se em tipos penais distintos, impossível era (também) reconhecer o crime continuado. Assim era antes da Lei 12.015/2009.
O STJ, nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP, Quinta Turma, dia 22 de junho de 2010, seguiu esse antigo entendimento: não se trata de crime único. Haveria, para essa Turma (votos condutores de Felix Fischer e Laurita Vaz), uma pluralidade de crimes (concurso material). E mais: considerando-se que se trata de “penetração sexual” distinta, nem sequer cabível seria o crime continuado. Fundamento dessa posição: “o novo crime de estupro é um tipo misto cumulativo.
O decidido pelo STJ (em 22.06.10) diverge do entendimento já aceito pelo STF, que sinalizou a aprovação da tese do crime único (HC 86.110-SP, rel. Min. Peluso). Nesse mesmo sentido: STJ, Sexta Turma, HC 144.870-DF, rel. Min. Og Fernandes, julgado em 9/2/2010.
O tipo penal do artigo 213, para nós, é um tipo penal composto ou misto ou de conteúdo múltiplo ou de conteúdo variado porque descreve várias ações. Tipo penal misto alternativo ou cumulativo?
Para Diego-Manuel Luzón Peña (Curso de Derecho penal, Universitas)o fator distintivo entre tais conceitos passa por saber se a segunda (ou outra) conduta agrega ou não maior desvalor ao fato. No caso do delito de tráfico de drogas (artigo 33 da Lei 11.343/2006), se o sujeito importa a droga e a mantém em depósito e depois transporta, em nada se altera o injusto —não existe maior desvalor da conduta ou do resultado. Cuida-se de um tipo penal misto alternativo. Quando a segunda conduta implica em maior desvalor do fato, o tipo penal seria misto cumulativo.
O critério dado por Luzón Peña nos parece válido, mas incompleto, porque para além do maior desvalor do fato há outros dados muito relevantes: saber se se trata do mesmo contexto fático ou não, da mesma vítima ou não, do mesmo bem jurídico ou não.
No caso do artigo 213 do CP, se o sujeito pratica coito vaginal e coito anal, contra a mesma vítima, no mesmo contexto fático, isso significa maior desvalor do fato? Para nós a resposta é positiva, claro que sim. Então o artigo 213 retrataria um tipo penal misto cumulativo? Sim.
Unitário ou concursal? Unitário. Por quê? Porque se trata de contexto fático único contra a mesma vítima. Contexto fático único, mesma vítima e mesmo bem jurídico, embora ofendido de diversas formas, jamais pode configurar uma pluralidade de delitos. Cuida-se de crime único. Mas a pluralidade de condutas e de ofensas valeriam para algo? Sim, para a dosagem da pena, nos termos do artigo 59 do Código Penal. O estupro com coito vaginal e anal, em razão do maior desvalor do fato, evidentemente tem que ser punido de forma mais grave que o estupro com coito vaginal tão-somente.
A Quinta Turma do STJ, nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP, acertou —de acordo com a classificação dada por Luzón Peña: maior desvalor do fato quando várias condutas são realizadas— ao admitir a existência no artigo 213 do CP de um tipo penal misto cumulativo. Equivocou-se, no entanto, ao concluir pelo concurso material de crimes). Equivocou-se mais ainda ao refutar o crime continuado, com base na teoria da “penetração sexual”.
O legislador da Lei 12.015/2009 atirou no que viu e acertou no que não viu. Ele queria punir mais gravemente o estupro e o atentado violento ao pudor. Imaginou que fundindo os dois tipos penais (artigos 213 e 214 do CP) isso seria alcançado. Errou no seu propósito. Mas acertou em fundir os dois tipos penais.
Cabe agora aos intérpretes e aplicadores da lei distinguirem o joio do trigo, ou seja, as situações concretas. Quando se trata do mesmo contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico, ainda que o sujeito realize várias ações, não há como deixar de reconhecer crime único (punido mais severamente). Considerando-se as várias ações (maior desvalor do fato), a ele (juiz) compete fazer a adequação da pena, atendendo à seguinte equação: maior desvalor do fato = maior pena.
*** Luiz Flávio Gomes é mestre em direito penal pela USP e doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madrid. Foi promotor de Justiça em São Paulo de 1980 a 1983 e juiz de direito em São Paulo de 1983 a 1998. É professor honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria (Arequipa, Peru) e professor de vários cursos de pós-graduação, dentre eles o da Facultad de Derecho de la Universidad Austral (Buenos Aires, Argentina) e o da Unisul (SC). É consultor do Iceps (International Center of Economic Penal Studies), em New York, e membro da Association Internationale de Droit Penal (Pau-França). É diretor-presidente da Rede LFG (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes), que promove cursos telepresenciais com transmissão ao vivo e em tempo real para todo país. É autor de vários livros (clique aqui para ver a lista completa), entre eles: Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, Penas e Medidas Alternativas à Prisão e Presunção de Violência nos Crimes Sexuais.
A deputada Maria do Rosário (PT-RS), relatora da lei, disse que a interpretação dos juízes está errada. “Se a pessoa pratica só conjunção carnal, ela vai ter pena de reclusão de seis anos. Se ela pratica coito anal, relação sexual oral, vários coitos, várias conjunções, a pena é a mesma. Isso acaba servindo de estímulo” (juiz Ulysses de Oliveira Gonçalves Júnior). No dia seguinte —e isso é a glória do jornalismo engajado com o populismo pena—, sua repercussão é imediata: “Senado avalia mudar nova lei do estupro”.
Quando a mídia dramatiza, espetaculariza, o parlamento imediatamente ecoa. O legislador, que perdeu completamente sua autoridade, em virtude do seu envolvimento com tantas falcatruas, nepotismos, patrimonialismos etc., já não consegue reagir de forma racional e independente. Seu discurso se apresenta, quase sempre, como apêndice da mídia. Essa é uma das partes mais visíveis da engrenagem do populismo penal.
A questão polêmica é a seguinte: o sujeito, no mesmo contexto fático, constrange a mesma vítima (uma mulher), mediante violência ou grave ameaça, e mantém com ela tanto conjunção carnal como coito anal. Esse “fato”, esse contexto fático único contra a mesma vítima, constitui crime único (CP, artigo 213, com a redação dada pela Lei 12.015/2009) ou uma pluralidade de crimes (concurso de crimes)?
Antes do advento da Lei 12.015/2009, os fatos narrados estavam previstos em dois tipos penais: artigo 213 (conjunção carnal) e artigo 214 do CP (coito anal, ou seja, ato libidinoso diverso da conjunção carnal). A jurisprudência majoritária entendia haver nesse caso concurso materialde crimes (JSTF 301/461), isto é, dois crimes autônomos e independentes, com penas somadas. Não se tratava de conduta única, logo, impossível era reconhecer o concurso formal. Mais: considerando-se que os dois delitos achavam-se em tipos penais distintos, impossível era (também) reconhecer o crime continuado. Assim era antes da Lei 12.015/2009.
O STJ, nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP, Quinta Turma, dia 22 de junho de 2010, seguiu esse antigo entendimento: não se trata de crime único. Haveria, para essa Turma (votos condutores de Felix Fischer e Laurita Vaz), uma pluralidade de crimes (concurso material). E mais: considerando-se que se trata de “penetração sexual” distinta, nem sequer cabível seria o crime continuado. Fundamento dessa posição: “o novo crime de estupro é um tipo misto cumulativo.
O decidido pelo STJ (em 22.06.10) diverge do entendimento já aceito pelo STF, que sinalizou a aprovação da tese do crime único (HC 86.110-SP, rel. Min. Peluso). Nesse mesmo sentido: STJ, Sexta Turma, HC 144.870-DF, rel. Min. Og Fernandes, julgado em 9/2/2010.
O tipo penal do artigo 213, para nós, é um tipo penal composto ou misto ou de conteúdo múltiplo ou de conteúdo variado porque descreve várias ações. Tipo penal misto alternativo ou cumulativo?
Para Diego-Manuel Luzón Peña (Curso de Derecho penal, Universitas)o fator distintivo entre tais conceitos passa por saber se a segunda (ou outra) conduta agrega ou não maior desvalor ao fato. No caso do delito de tráfico de drogas (artigo 33 da Lei 11.343/2006), se o sujeito importa a droga e a mantém em depósito e depois transporta, em nada se altera o injusto —não existe maior desvalor da conduta ou do resultado. Cuida-se de um tipo penal misto alternativo. Quando a segunda conduta implica em maior desvalor do fato, o tipo penal seria misto cumulativo.
O critério dado por Luzón Peña nos parece válido, mas incompleto, porque para além do maior desvalor do fato há outros dados muito relevantes: saber se se trata do mesmo contexto fático ou não, da mesma vítima ou não, do mesmo bem jurídico ou não.
No caso do artigo 213 do CP, se o sujeito pratica coito vaginal e coito anal, contra a mesma vítima, no mesmo contexto fático, isso significa maior desvalor do fato? Para nós a resposta é positiva, claro que sim. Então o artigo 213 retrataria um tipo penal misto cumulativo? Sim.
Unitário ou concursal? Unitário. Por quê? Porque se trata de contexto fático único contra a mesma vítima. Contexto fático único, mesma vítima e mesmo bem jurídico, embora ofendido de diversas formas, jamais pode configurar uma pluralidade de delitos. Cuida-se de crime único. Mas a pluralidade de condutas e de ofensas valeriam para algo? Sim, para a dosagem da pena, nos termos do artigo 59 do Código Penal. O estupro com coito vaginal e anal, em razão do maior desvalor do fato, evidentemente tem que ser punido de forma mais grave que o estupro com coito vaginal tão-somente.
A Quinta Turma do STJ, nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP, acertou —de acordo com a classificação dada por Luzón Peña: maior desvalor do fato quando várias condutas são realizadas— ao admitir a existência no artigo 213 do CP de um tipo penal misto cumulativo. Equivocou-se, no entanto, ao concluir pelo concurso material de crimes). Equivocou-se mais ainda ao refutar o crime continuado, com base na teoria da “penetração sexual”.
O legislador da Lei 12.015/2009 atirou no que viu e acertou no que não viu. Ele queria punir mais gravemente o estupro e o atentado violento ao pudor. Imaginou que fundindo os dois tipos penais (artigos 213 e 214 do CP) isso seria alcançado. Errou no seu propósito. Mas acertou em fundir os dois tipos penais.
Cabe agora aos intérpretes e aplicadores da lei distinguirem o joio do trigo, ou seja, as situações concretas. Quando se trata do mesmo contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico, ainda que o sujeito realize várias ações, não há como deixar de reconhecer crime único (punido mais severamente). Considerando-se as várias ações (maior desvalor do fato), a ele (juiz) compete fazer a adequação da pena, atendendo à seguinte equação: maior desvalor do fato = maior pena.
*** Luiz Flávio Gomes é mestre em direito penal pela USP e doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madrid. Foi promotor de Justiça em São Paulo de 1980 a 1983 e juiz de direito em São Paulo de 1983 a 1998. É professor honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria (Arequipa, Peru) e professor de vários cursos de pós-graduação, dentre eles o da Facultad de Derecho de la Universidad Austral (Buenos Aires, Argentina) e o da Unisul (SC). É consultor do Iceps (International Center of Economic Penal Studies), em New York, e membro da Association Internationale de Droit Penal (Pau-França). É diretor-presidente da Rede LFG (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes), que promove cursos telepresenciais com transmissão ao vivo e em tempo real para todo país. É autor de vários livros (clique aqui para ver a lista completa), entre eles: Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, Penas e Medidas Alternativas à Prisão e Presunção de Violência nos Crimes Sexuais.
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