Pesquisa publicada em 2010 aponta que 48% dos entrevistados têm amigo ou conhecido autor de violência doméstica; 25% possuem parentes que agridem as companheiras; 2% declararam que “tem mulher que só aprende apanhando bastante” (Fundação Perseu Abramo). A mesma pesquisa conclui que a cada 2 minutos 5 mulheres são espancadas.
O número assusta, mas, é de se ressaltar, no princípio da década passada a proporção era ainda maior: 8 em cada 2 minutos. Não obstante a melhoria do quadro (diminuição em 37% das agressões entre 2001 e 2007), devemos conter nossa euforia.
Os índices registrados no Brasil continuam dentre os mais elevados do mundo e nossa violência permanece um grave problema de saúde pública. Violência que é empregada por homens (maridos, noivos, namorados) contra mulheres em razão de uma aberrante cultura (patriarcal) que lhes coloca em posição privilegiada de domínio, transformando a mulher em coisa (objeto).
Outro motivo que arrefece a comemoração: se, de um lado, houve diminuição de 37% nos crimes de lesão corporal, o mesmo percentual não acompanhou a redução dos homicídio praticados contra mulheres (70% desses crimes são praticados por aqueles que detêm um vínculo de afeto com a vítima). Em 2004 foram registradas 3.840 mortes, enquanto que no ano de 2007 o número foi apenas levemente menor (3.772).
Claro que se deve incluir na presente análise o fato de que o país registrou crescimento populacional. Interessa-nos, assim, para fazermos um melhor comparativo, o dado que leva em conta o número total de habitantes: o percentual de 4,2 homicídios de mulheres por 100 mil habitantes alcançado em 2004 sofreu uma pequena redução, passando para 3,9 em 2007.
Continua sendo um número muito elevado quando comparado a taxas de outros países, mas não deixa de representar uma diminuição (7%), principalmente quando pensamos no número de vidas poupadas. Mais um motivo, portanto, para reconhecer avanços. Quando a análise recai sobre a América Latina, percebe-se uma realidade marcantemente diferente.
Em El Salvador, o femicídio (morte de mulheres) aumentou 197% na última década. Na Guatemala, a elevação foi de 400%. Os números são assustadores em todo Continente (El País, 18fev11, p. 32). O sistema judicial de praticamente todos esses países funciona muito mal. A impunidade é quase generalizada.
Daí a legitimidade e necessidade de intervenção da Justiça Internacional, a qual, felizmente, tem sido pedagogicamente atuante. É emblemática, a propósito, a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 10.12.09 (Caso Campo Algonodero, México), que condenou o Estado mexicano por sua omissão na apuração de vários homicídios contra mulheres.
A mesma sentença demarcou a culpabilidade da sociedade, que deve mudar os seus padrões culturais e comportamentais. Também paradigmática foi a decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 4.04.01 (Caso Maria da Penha Maia Fernandes – Relatório n. 54/01, Caso 12.051), que, por conta de atraso em decisão judicial cujo processo tinha como objeto situação de violência contra mulher, recomendou ao Brasil, dentre outras medidas, “prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no país.”
O caráter universal dos direitos humanos deixa de sê-lo frente às mulheres que, em regra, vivem sob o império da desigualdade e da discriminação, sujeitando-se a uma cultura patriarcal, a crendices religiosas que privilegiam os homens, a guerras contínuas, a situações de extrema pobreza e de falta de acesso à Justiça, ao analfabetismo etc.
Até o princípio dos anos 90 essa dramática questão era vista como um problema privado. Hoje, o assunto é de interesse público e pertence ao mundo dos direitos humanos. Se a Justiça de cada país não funciona, entram em cena os juízes internacionais.
Daí a relevância cada vez maior dos tratados (e o Brasil é signatário de todos os instrumentos internacionais que digam respeito ao tema violência de gênero, no ambito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos), assim como da jurisprudência internacional nessa área.
Impõe-se que ninguém negligencie a exibição pública (a visibilidade) ampla dos nefastos resultados advindos da impunidade da violência machista epidêmica, com o objetivo de fazer com que as instituições funcionem adequadamente, no sentido de tutelar os direitos humanos das oprimidas e violentadas mulheres. Sem empolgação e com as devidas ressalvas, ao menos no plano internacional, há o que comemorar.
*** Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001)
*** Alice Bianchini é doutora em Direito Penal pela PUC-SP, mestre em Direito pela UFSC, professora de Direito Penal do Curso de Mestrado da Unisul. Professora convidada nos cursos de pós-graduação da UEL, da PUC-RS, da UFBA, do UniCuritiba e do Podivm (BA). Presidente do Instituto Panamericano de Política Criminal e coordenadora dos Cursos de Especialização TeleVirtuais da Universidade Anhanguera-Uniderp, em convênio com a Rede LFG.
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