FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
As investigações apontam que o principal suspeito da morte da advogada Mércia Nakashima, em junho, é um policial militar reformado, atualmente advogado, Mizael Bispo de Souza. O motivo seria a incapacidade do ex-policial em aceitar o fim do relacionamento amoroso. Testemunhas apontam que ela estava com medo e tinha todos os motivos para achar que corria perigo.
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As investigações apontam que o principal suspeito da morte da ex-modelo Eliza Samudio, em julho, é Marcos Aparecido dos Santos, o “Bola”, ex-policial paulista. Essa morte teria um mandante, o goleiro do Flamengo Bruno Fernandes das Dores Souza. O motivo seria um processo judicial de reconhecimento de paternidade movido por Eliza contra Bruno. Eliza estava com medo, tinha todos os motivos para achar que corria perigo. Procurou a Delegacia da Mulher e o Poder Judiciário.
Se confirmadas as suspeitas, esse tipo de morte tem um nome: femicídio, isto é, a morte de mulheres que morrem por serem mulheres, e por lutarem por direitos civis fundamentais, como a liberdade de pôr fim a um relacionamento ou de ter a paternidade de um filho reconhecida. Todas nós lutamos pelos direitos que Mércia e Eliza não puderam ver assegurados. Elas não terão sobrevivido à luta para assegurar coisas tão simples...
Não se poderá culpar a fraqueza das leis, pois a Lei Maria da Penha está aí, com toda a sua complexidade e o seu conceito de atenção integral. Dever-se-á responsabilizar a ausência de condições da polícia em realizar os procedimentos previstos na Lei para a proteção da vida e da integridade física de mulheres que têm medo e motivos para acharem que estão em perigo. O mínimo a esperar será que a polícia justifique aos cidadãos porque falhou tanto e tão gravemente.
Haverá ainda o Ministério Público que, pela Lei, deve fiscalizar as atividades da polícia. Nesse caso, se a polícia tiver falhado, a instância que deveria ter constatado as falhas e cobrado sua correção é o Ministério Público. O mínimo a esperar será que justifique aos cidadãos porque se omitiu tanto e tão gravemente.
E haverá ainda o Poder Judiciário. Enquanto Eliza estava viva, a juíza que analisava o processo judicial entendeu que não cabia a aplicação da Lei Maria da Penha. Sua morte terá sido tragicamente didática para esclarecer a natureza da relação jurídica existente entre ela e o homem que acredita deter poder de vida e morte sobre as mulheres com quem se relaciona. O mínimo a esperar é que o Poder Judiciário assuma suas responsabilidades em relação à manutenção da vida dos cidadãos, que não se recolha à cômoda posição de individualizar os culpados apenas nas relações privadas.
Se confirmadas as suspeitas, nos dois casos, não terão faltado policiais dispostos à ação. Um terá afogado Mércia. O outro terá esquartejado Eliza. É evidente que há milhares de policiais honestos, dedicados, dispostos a sacrificar suas vidas pelo cumprimento das leis. E o que farão esses milhares para assegurar que o seu ofício não prossiga sendo manchado com o sangue de mulheres que pediam tão pouco?
Não se tratará apenas de assegurar a rigorosa punição dos culpados. Seria absolutamente inaceitável que não o fizessem. Deveríamos esperar bem mais, como a indignação dos milhares de bons policiais e a sua enérgica reação para impedir que mais colegas seus saiam das corporações com a certeza de que estão totalmente acima das leis, tranquilos para afogar, asfixiar e esquartejar mulheres amedrontadas, porque eles continuam tendo bons contatos dentro da polícia.
Se forem verdadeiras as histórias que temos ouvido, mais do que investigar e elucidar dois casos de femicídio, devemos esperar que a polícia pare para pensar muito a sério nas responsabilidades que terá tido na produção de assassinos que se acharam acima de qualquer limite. A brutalidade dessas mortes precisa ao menos servir para que uma polícia cada vez mais profissionalizada demarque firmemente a diferença que existe entre o seu ofício de defesa incondicional das leis e a nefasta confusão entre policiais e matadores, que muita gente incentivou durante muito tempo.
Devemos esperar ainda que Ministério Público e Poder Judiciário também assumam suas responsabilidades na transformação de um sistema de Justiça exclusivamente punitivo (aquele que só corre atrás do prejuízo) em um sistema de Justiça capaz de garantir, assegurar e promover a vida digna aos cidadãos que buscam sua intervenção.
Serão nossas únicas esperanças. Para que agosto não traga mais notícias ruins.
*** Jacqueline Sinhoretto é professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, onde coordena o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos. Além disso, é autora das obras Os Justiçadores e Sua Justiça - Linchamentos, Costume e Conflito (IBCCrim) e Ir aonde o povo está (Alameda, no prelo).
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Se confirmadas as suspeitas, esse tipo de morte tem um nome: femicídio, isto é, a morte de mulheres que morrem por serem mulheres, e por lutarem por direitos civis fundamentais, como a liberdade de pôr fim a um relacionamento ou de ter a paternidade de um filho reconhecida. Todas nós lutamos pelos direitos que Mércia e Eliza não puderam ver assegurados. Elas não terão sobrevivido à luta para assegurar coisas tão simples...
Não se poderá culpar a fraqueza das leis, pois a Lei Maria da Penha está aí, com toda a sua complexidade e o seu conceito de atenção integral. Dever-se-á responsabilizar a ausência de condições da polícia em realizar os procedimentos previstos na Lei para a proteção da vida e da integridade física de mulheres que têm medo e motivos para acharem que estão em perigo. O mínimo a esperar será que a polícia justifique aos cidadãos porque falhou tanto e tão gravemente.
Haverá ainda o Ministério Público que, pela Lei, deve fiscalizar as atividades da polícia. Nesse caso, se a polícia tiver falhado, a instância que deveria ter constatado as falhas e cobrado sua correção é o Ministério Público. O mínimo a esperar será que justifique aos cidadãos porque se omitiu tanto e tão gravemente.
E haverá ainda o Poder Judiciário. Enquanto Eliza estava viva, a juíza que analisava o processo judicial entendeu que não cabia a aplicação da Lei Maria da Penha. Sua morte terá sido tragicamente didática para esclarecer a natureza da relação jurídica existente entre ela e o homem que acredita deter poder de vida e morte sobre as mulheres com quem se relaciona. O mínimo a esperar é que o Poder Judiciário assuma suas responsabilidades em relação à manutenção da vida dos cidadãos, que não se recolha à cômoda posição de individualizar os culpados apenas nas relações privadas.
Se confirmadas as suspeitas, nos dois casos, não terão faltado policiais dispostos à ação. Um terá afogado Mércia. O outro terá esquartejado Eliza. É evidente que há milhares de policiais honestos, dedicados, dispostos a sacrificar suas vidas pelo cumprimento das leis. E o que farão esses milhares para assegurar que o seu ofício não prossiga sendo manchado com o sangue de mulheres que pediam tão pouco?
Não se tratará apenas de assegurar a rigorosa punição dos culpados. Seria absolutamente inaceitável que não o fizessem. Deveríamos esperar bem mais, como a indignação dos milhares de bons policiais e a sua enérgica reação para impedir que mais colegas seus saiam das corporações com a certeza de que estão totalmente acima das leis, tranquilos para afogar, asfixiar e esquartejar mulheres amedrontadas, porque eles continuam tendo bons contatos dentro da polícia.
Se forem verdadeiras as histórias que temos ouvido, mais do que investigar e elucidar dois casos de femicídio, devemos esperar que a polícia pare para pensar muito a sério nas responsabilidades que terá tido na produção de assassinos que se acharam acima de qualquer limite. A brutalidade dessas mortes precisa ao menos servir para que uma polícia cada vez mais profissionalizada demarque firmemente a diferença que existe entre o seu ofício de defesa incondicional das leis e a nefasta confusão entre policiais e matadores, que muita gente incentivou durante muito tempo.
Devemos esperar ainda que Ministério Público e Poder Judiciário também assumam suas responsabilidades na transformação de um sistema de Justiça exclusivamente punitivo (aquele que só corre atrás do prejuízo) em um sistema de Justiça capaz de garantir, assegurar e promover a vida digna aos cidadãos que buscam sua intervenção.
Serão nossas únicas esperanças. Para que agosto não traga mais notícias ruins.
*** Jacqueline Sinhoretto é professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, onde coordena o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos. Além disso, é autora das obras Os Justiçadores e Sua Justiça - Linchamentos, Costume e Conflito (IBCCrim) e Ir aonde o povo está (Alameda, no prelo).
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