FONTE: Renata Reif/iG São Paulo, TRIBUNA DA BAHIA.
Inconveniente, repetitivo, dono
da verdade e irritante. São essas as principais características do chato,
segundo o “Tratado Geral dos Chatos” (Civilização Brasileira).
Considerada a bíblia do assunto, a obra escrita por Guilherme Figueiredo em
1960 descreve todas as variações da chatice, “qualidade” que, não à toa, tirou
sua denominação de um parasita capaz de causar irritação e incômodo nas partes
íntimas do homem.
Daí a associação com aquela pessoa
importuna, que não sabe se comportar no convívio social. “O chato é pouco
sensível ao entorno, ao próprio ambiente, então não percebe sua inadequação”,
pontua Denize Rubano, professora Faculdade de Psicologia da PUC São Paulo.
Pessoas inconvenientes sempre
existiram. As roupagens é que mudam com o tempo, conforme explica o
psicanalista Raymundo Lima, professor do
Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá
(UEM) e estudioso da obra de Guilherme Figueiredo. O clássico e inocente “chato
de galocha”, por exemplo, mostra o aspecto cultural de sua época: era aquele
sujeito que não tirava as galochas molhadas para entrar nos locais. Molhava
tudo e irritava as pessoas.
Há chatos menos datados na lista
de Figueiredo. É o caso do “chato-etílico”, que se revela depois de alguns
goles. Fã de
pegadinhas, o “chatimbanco” adora puxar a cadeira quando você vai sentar. Já o
“existenchatista” não precisa fazer nada. Basta a sua presença para chatear os
demais. A lista do livro é extensa e não são necessárias explicações
pseudocientíficas para reconhecê-los. O dia a dia é um observatório deles.
Desculpe se estou sendo
chato.
Falta de educação pode ser um forte indício de chatice. “O chato
quase sempre invade a privacidade do outro e o deixa constrangido”,
descreve Lima. Por isso afasta as pessoas. “Lá vem ele”, é
comum escutar antes de uma rodinha de gente se espalhar. Mas uma cena dessas não
inspira pena. Isso porque “o chato nunca se chateia”, como
garante Figueiredo.
Os chatos são pessoas que não têm
os limites claros. “Falam muito perto, pegam o tempo todo no outro
enquanto conversam, abrem a geladeira na casa de alguém que mal conhecem.
Ou seja, ultrapassam os limites”, resume Liliana Seger, coordenadora do
Ambulatório dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas.
A chatice também está ligada aos
comportamentos extremos. “Uma pessoa que não tem humor é chata, mas fazer
gracinha o tempo todo também é muito chato. Tudo que é totalmente introspectivo
ou extrovertido corre o risco de ser chato”.
Para Liliana, o chato não se dá conta que
está sendo inadequado porque o chateado não é assertivo o suficiente para
sinalizar o problema. Outro motivo pode estar relacionado a uma crise eufórica.
“O cérebro produz uma sensação prazerosa nesse momento. E o chato entende que
ele foi agradável, não o contrário”, completa Raymundo Lima.
“Eu sou assim”.
A voz, os gestos e o modo de se relacionar dão pistas sobre o grau de
importunação dos chatos. São normalmente politicamente incorretos. Fazem piadas
inapropriadas com minorias. O intelectual também dá seus sinais de chatice,
pois só fala de ideias e tem dificuldade de relaxar.
A repetição é uma característica fortemente
ligada à chatice, como os casos de transtorno obsessivo compulsivo: aqueles que
acumulam entulho em casa ou lavam as mãos a cada minuto. “Toda doença neurótica
costuma ser chata”, diz o psicanalista Raymundo Lima.
O chato convicto aprendeu a viver de sua
própria maneira e não sabe viver de outra forma. “Pelo lado da psicanálise, é
triste notar que eles desenvolveram um traço de caráter, de personalidade, que
é difícil de ser removido pela própria pessoa ou pelo meio social”, lamenta
Lima. O chato desenvolve esse maneirismo e se beneficia disso na medida em que
se acomoda. É esta a sua marca: “eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim”.
Mundo chato.
Entre as definições antigas, o chato é uma pessoa que fala quando deveria
escutar: ele é egoísta, fala de forma compulsiva e nunca pergunta como o outro
está.
Raymundo Lima vê esta atitude arrogante se
acentuar na era moderna. “As pessoas se sentem muito no direito e pouco no
dever, como se estivessem autorizadas a cometer o que bem entendem”, observa.
As novas tecnologias também fornecem novas
armas aos chatos. Eles podem encaminhar um monte de correntes e histórias
falsas, por email ou pelo Facebook. E quer coisa mais inadequada do que
disputar a atenção de alguém com um celular? “Hoje o chato é dotado de outros
recursos para exercer sua chatice. A tecnologia surge muito rapidamente, os
comportamentos e as relações entre as pessoas têm mudado, sem uma ética
própria”, alerta Denise.
O jornalista e humorista Apparício Torelly,
que ficou conhecido como Barão de Itararé, costumava dizer que o mundo é
redondo, mas está ficando muito chato. Lima concorda. “Com o avanço da
modernidade líquida, em que tudo é volátil, as relações perdem consistência.
As pessoas ficam com medo de ser preteridas, quando uma boa relação não pode
ser burocrática, cheia de sinais amarelos. Ela vale um monte de pequenas
transgressões”, diz.
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