FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
Atualmente questiona-se se al reparação por danos morais deve ser objeto de incidência de IR (Imposto de Renda). O tema da incidência do IR sobre o dano moral é controverso na jurisprudência tributária, mas no final do ano passado, decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) firmou entendimento de que o dano estritamente moral não acarreta acréscimo patrimonial e, sobre ele, não deve incidir tributo.
A questão é de ordem tributária, mas refere-se a aspectos que se projetam na esfera da Teoria do Direito e da Hermenêutica, na pesquisa de novos meios de lidar com o fenômeno jurídico, numa necessária aproximação da inquirição teórica à realização prática. Não se trata de exercício meramente argumentativo, passível de ser classificado em duas correntes antagônicas, cujo processo de conflito, dada a passagem do tempo, alcançará resultado conciliatório mediante síntese, adotando-se postura “mista”.
Não é mais aceitável se enxergar o direito como um “duelo de correntes”, como se todas as posições fossem válidas, como se os agentes oficias de decisão fossem dotados de disposição científica “pura”, livre de todas as incidências, sejam elas sociais, políticas, culturais e, até mesmo, profissionais. Não é possível trabalhar o fenômeno jurídico em laboratório, ao modo das ciências naturais. Não é mais possível vislumbrar a norma jurídica como estrutura lógico-formal, cujas disposições são compreendidas por procedimentos assépticos de limitação dogmática de conceitos.
Mas, imaginemos o contrário, que o direito pode ser trabalhado como ciência da natureza. Vamos fazer nossa experiência: tomemos a determinação conceitual “reparação por dano moral” e coloquemos num tubo de ensaio, dentro do nosso laboratório imaginário. Como manda a boa técnica, toda substância somente é conhecida quando encontramos seus elementos de composição, a exemplo da água, representada pela fórmula H2O, indicando que em sua estrutura mínima há ligação de duas partes de hidrogênio para uma de oxigênio. Quais são os elementos de “reparação por dano moral”?
Como a estrutura mínima é conceitual, por óbvio seus elementos também o serão. Vamos lá: “reparação” indica conserto, restauração, ressarcimento. “Dano” indica destruição, estrago, prejuízo. “Moral”, cuja conceituação já é bastante complicada, aponta para costumes, honra, vergonha ou conjunto de qualidades que compõem o aspecto não-físico, abstrato, não percebido pelas sensações de dada pessoa.
Continuemos e, nos moldes do exemplo da água, vamos relacionar os conceitos: “dano” relacionado à “moral” implica na destruição de algo não-físico que compunha qualidade abstrata de uma pessoa. “Reparação”, assim, é a restauração da “moral” por causa do “dano” provocado. Nossa experiência se embaraça um pouco, pois temos que trabalhar em planos distintos, afinal “reparação” é algo físico e “moral” está em plano abstrato. Por convenção, não há outra saída, optamos por fazer isto financeiramente. Da nossa experiência nasce outro elemento que é soma de dinheiro, algo com valor financeiro e patrimonial, que vai do plano abstrato ao concreto. Assim, “reparação por dano moral” compõe-se ao final de um valor monetário.
Vamos agora, rapidamente, fazer outra experiência denominada “tributação por IR”. Depois de vários procedimentos, descobrimos que o elemento componente é “acréscimo patrimonial”, que também é valor monetário. Sempre que este ocorrer, há “tributação por IR”.
Comparemos as duas experiências: ambas são válidas, se nós as misturarmos. Se nós quisermos tributar pelo IR a reparação por dano moral, nós podemos; se não quisermos, também podemos. Afinal, há um elemento comum na assepsia de nosso estudo experimental, que é o valor monetário a indicar lógica, financeira e contabilmente que alguém recebeu uma determinada quantia na situação de ter sofrido um dano, o qual foi reparado posteriormente.
Pode parecer uma brincadeira, mas infelizmente muitos trabalham com o direito desta maneira e não apenas na área tributária. Apenas mascaram tal postura por meio de uma retórica rica e eloqüente, mas que nenhum benefício traz a ninguém.
O direito não é uma ciência natural. Quem com ele trabalha sofre a influência da ideologia, da pré-concepção, da prévia cosmovisão e de toda cultura na qual está inserido, incluindo-se as dimensões políticas e sociais.
Para se interpretar uma situação jurídica, esta, por exemplo, da tributação pelo IR da reparação por dano moral, deve-se levar em conta todas as circunstâncias que envolvem o evento e não apenas conceitos léxicos, gramaticais ou sintáticos, considerados num sistema construído por uma lógica meramente formalizada.
Para se encontrar a validade ou não de tal fato, deve-se considerar o fundamento da criação da reparação do dano moral. Se o dano moral é um prejuízo não-físico que atinge alguém subjetivamente, considerado como essência ou resultado pragmático, como quantificá-lo fora dessa pessoa? Alguém que sofre destruição ou perda de qualquer parcela, por menor que seja, de sua personalidade, de seu conteúdo subjetivo que caracteriza sua individualidade, ao receber a reparação (que é física e expressa em dinheiro) teve algum ganho? O valor monetário, que obviamente é acrescentado ao patrimônio daquele que sofreu o dano, pode ser considerado no mesmo plano do patrimônio material previamente existente? Comunicam-se tais planos patrimoniais?
E no aspecto tributário, o motivo da existência do imposto de renda, que é a divisão social da renda do indivíduo, que é a pulverização de ganhos a fim de estabelecer melhor espaço financeiro de coletividade, que é o alcance do bem comum pela socialização do capital administrado pelo governo, que é a busca da justiça social, pode ser respeitado quando se tributa a reparação por dano moral?
Em termos políticos, num país que pretenda privilegiar direitos fundamentais e a humanização da sociedade, que pretenda buscar preservar a pessoa e sua integridade física e moral, ocorrido um dano a esta, que se efetiva numa esfera subjetiva, pode-se pensar em coletivizar sua recomposição? Como algo individualmente perdido ou destruído, com sua restauração, pode ser coletivizado?
Pode juridicamente, na efetiva acepção do direito, com seu estatuto humano, considerar-se a reparação por dano moral, repita-se, dano sofrido por um indivíduo, em sua subjetividade, cuja valoração não ocorre por aquisição mediante trabalho ou qualquer outra atividade produzida, gerada ou provocada numa relação pretendida pelo indivíduo no espaço público e servindo-se de condições e relações sociais, pode tal reparação configurar fato gerador do IR?
Se o direito for um jogo lógico de aritmética e contabilidade, sim; porém, se a pessoa humana for o objetivo do Estado, se importante forem as relações intersubjetivas de civilidade, se o enfoque for o do desenvolvimento pleno da individualidade, se houver projeto governamental e não meros interesses arrecadadores, jamais.
*** João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. Especialista em direito penal, pós-graduado em filosofia e mestre em filosofia do direito, foi delegado de Polícia e coordenador da Assessoria Jurídica da Febem. Atualmente é membro efetivo da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP, além de professor assistente e coordenador de núcleo de pesquisa da PUC-SP.
A questão é de ordem tributária, mas refere-se a aspectos que se projetam na esfera da Teoria do Direito e da Hermenêutica, na pesquisa de novos meios de lidar com o fenômeno jurídico, numa necessária aproximação da inquirição teórica à realização prática. Não se trata de exercício meramente argumentativo, passível de ser classificado em duas correntes antagônicas, cujo processo de conflito, dada a passagem do tempo, alcançará resultado conciliatório mediante síntese, adotando-se postura “mista”.
Não é mais aceitável se enxergar o direito como um “duelo de correntes”, como se todas as posições fossem válidas, como se os agentes oficias de decisão fossem dotados de disposição científica “pura”, livre de todas as incidências, sejam elas sociais, políticas, culturais e, até mesmo, profissionais. Não é possível trabalhar o fenômeno jurídico em laboratório, ao modo das ciências naturais. Não é mais possível vislumbrar a norma jurídica como estrutura lógico-formal, cujas disposições são compreendidas por procedimentos assépticos de limitação dogmática de conceitos.
Mas, imaginemos o contrário, que o direito pode ser trabalhado como ciência da natureza. Vamos fazer nossa experiência: tomemos a determinação conceitual “reparação por dano moral” e coloquemos num tubo de ensaio, dentro do nosso laboratório imaginário. Como manda a boa técnica, toda substância somente é conhecida quando encontramos seus elementos de composição, a exemplo da água, representada pela fórmula H2O, indicando que em sua estrutura mínima há ligação de duas partes de hidrogênio para uma de oxigênio. Quais são os elementos de “reparação por dano moral”?
Como a estrutura mínima é conceitual, por óbvio seus elementos também o serão. Vamos lá: “reparação” indica conserto, restauração, ressarcimento. “Dano” indica destruição, estrago, prejuízo. “Moral”, cuja conceituação já é bastante complicada, aponta para costumes, honra, vergonha ou conjunto de qualidades que compõem o aspecto não-físico, abstrato, não percebido pelas sensações de dada pessoa.
Continuemos e, nos moldes do exemplo da água, vamos relacionar os conceitos: “dano” relacionado à “moral” implica na destruição de algo não-físico que compunha qualidade abstrata de uma pessoa. “Reparação”, assim, é a restauração da “moral” por causa do “dano” provocado. Nossa experiência se embaraça um pouco, pois temos que trabalhar em planos distintos, afinal “reparação” é algo físico e “moral” está em plano abstrato. Por convenção, não há outra saída, optamos por fazer isto financeiramente. Da nossa experiência nasce outro elemento que é soma de dinheiro, algo com valor financeiro e patrimonial, que vai do plano abstrato ao concreto. Assim, “reparação por dano moral” compõe-se ao final de um valor monetário.
Vamos agora, rapidamente, fazer outra experiência denominada “tributação por IR”. Depois de vários procedimentos, descobrimos que o elemento componente é “acréscimo patrimonial”, que também é valor monetário. Sempre que este ocorrer, há “tributação por IR”.
Comparemos as duas experiências: ambas são válidas, se nós as misturarmos. Se nós quisermos tributar pelo IR a reparação por dano moral, nós podemos; se não quisermos, também podemos. Afinal, há um elemento comum na assepsia de nosso estudo experimental, que é o valor monetário a indicar lógica, financeira e contabilmente que alguém recebeu uma determinada quantia na situação de ter sofrido um dano, o qual foi reparado posteriormente.
Pode parecer uma brincadeira, mas infelizmente muitos trabalham com o direito desta maneira e não apenas na área tributária. Apenas mascaram tal postura por meio de uma retórica rica e eloqüente, mas que nenhum benefício traz a ninguém.
O direito não é uma ciência natural. Quem com ele trabalha sofre a influência da ideologia, da pré-concepção, da prévia cosmovisão e de toda cultura na qual está inserido, incluindo-se as dimensões políticas e sociais.
Para se interpretar uma situação jurídica, esta, por exemplo, da tributação pelo IR da reparação por dano moral, deve-se levar em conta todas as circunstâncias que envolvem o evento e não apenas conceitos léxicos, gramaticais ou sintáticos, considerados num sistema construído por uma lógica meramente formalizada.
Para se encontrar a validade ou não de tal fato, deve-se considerar o fundamento da criação da reparação do dano moral. Se o dano moral é um prejuízo não-físico que atinge alguém subjetivamente, considerado como essência ou resultado pragmático, como quantificá-lo fora dessa pessoa? Alguém que sofre destruição ou perda de qualquer parcela, por menor que seja, de sua personalidade, de seu conteúdo subjetivo que caracteriza sua individualidade, ao receber a reparação (que é física e expressa em dinheiro) teve algum ganho? O valor monetário, que obviamente é acrescentado ao patrimônio daquele que sofreu o dano, pode ser considerado no mesmo plano do patrimônio material previamente existente? Comunicam-se tais planos patrimoniais?
E no aspecto tributário, o motivo da existência do imposto de renda, que é a divisão social da renda do indivíduo, que é a pulverização de ganhos a fim de estabelecer melhor espaço financeiro de coletividade, que é o alcance do bem comum pela socialização do capital administrado pelo governo, que é a busca da justiça social, pode ser respeitado quando se tributa a reparação por dano moral?
Em termos políticos, num país que pretenda privilegiar direitos fundamentais e a humanização da sociedade, que pretenda buscar preservar a pessoa e sua integridade física e moral, ocorrido um dano a esta, que se efetiva numa esfera subjetiva, pode-se pensar em coletivizar sua recomposição? Como algo individualmente perdido ou destruído, com sua restauração, pode ser coletivizado?
Pode juridicamente, na efetiva acepção do direito, com seu estatuto humano, considerar-se a reparação por dano moral, repita-se, dano sofrido por um indivíduo, em sua subjetividade, cuja valoração não ocorre por aquisição mediante trabalho ou qualquer outra atividade produzida, gerada ou provocada numa relação pretendida pelo indivíduo no espaço público e servindo-se de condições e relações sociais, pode tal reparação configurar fato gerador do IR?
Se o direito for um jogo lógico de aritmética e contabilidade, sim; porém, se a pessoa humana for o objetivo do Estado, se importante forem as relações intersubjetivas de civilidade, se o enfoque for o do desenvolvimento pleno da individualidade, se houver projeto governamental e não meros interesses arrecadadores, jamais.
*** João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. Especialista em direito penal, pós-graduado em filosofia e mestre em filosofia do direito, foi delegado de Polícia e coordenador da Assessoria Jurídica da Febem. Atualmente é membro efetivo da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP, além de professor assistente e coordenador de núcleo de pesquisa da PUC-SP.
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