A fala pausada não
conseguiu fazer a segurança Maria Alves, de 47 anos, conter as lágrimas durante
a conversa. Alguns segundos em silêncio foram interrompidos por mim: "Se
você preferir, a gente pode falar em outro momento". "Não", disse
ela, com uma repentina voz firme. "Eu me emociono, mas quero falar sobre
isso".
Maria foi escrava
sexual na Suíça, nos anos 1990. Ela passou dois anos trancada em um apartamento
que tinha o tamanho de um quarto, sob efeito de heroína, que conseguia com os
clientes que passavam diariamente por lá. Ela atendia, em média, 15 pessoas
todos os dias, entre homens e mulheres de diversos lugares do mundo, mas não
via a cor dos 300 francos suíços que, deles, eram cobrados por hora. À época, o
valor equivalia a R$ 600.
"Fiquei dois anos
presa em um apartamento minúsculo".
"Desde meus 17
anos, trabalhei em casas de prostituição de luxo. Eu só saía com homens ricos,
como médicos e delegados, e, por isso, consegui fazer um bom pé de meia. Em uma
das casas de prostituição em que trabalhei, ouvi de um colega sobre a
possibilidade de ser garota de programa na Suíça. Aquilo fez meus olhos
brilharem. Ele conhecia a cafetina que importava as meninas --ela é brasileira
e, apesar de morar em Lugano, vinha para o Brasil com frequência. Ela comandava
o negócio junto com o marido.
Pensei que seria uma
boa ideia, mas mal sabia eu que embarcaria para o inferno. Ele me apresentou a
essa mulher, que ficou responsável por cuidar dos trâmites legais até que eu
embarcasse. Ela me ajudou a tirar o passaporte e arcou com os custos da viagem.
Morávamos eu, a
cafetina e mais duas garotas de programa em um apartamento pequeno. As portas
ficavam trancadas e éramos proibidas de sair; éramos ameaçadas de morte caso
tentássemos fugir. Eles diziam: 'Vamos sumir com o seu corpo'. Pela minha hora,
ela cobrava dos clientes 300 francos suíços, só que eu não via a cor do
dinheiro. Ela justificava que eu precisava pagar pelos custos da viagem e pelo
aluguel do apartamento, que custava 150 francos suíços por dia. Dizia que eu
comia e bebia de graça, por isso precisava prestar contas.
"Ficava de costas;
eles entravam e me penetravam".
Foi quando me dei conta
de que eu havia sido transformada em uma escrava sexual. Eu não tinha vida além
daquilo. Não podia sair de casa, mal via a luz do sol. As portas ficavam
trancadas. Transava com 15 pessoas por dia, em sua maioria homens, cujos rostos
eu, muitas vezes, nem via. Ficava de costas deitada na cama, eles entravam, me
penetravam e iam embora. Eu não tinha folga, tinha que transar até quando
estava menstruada. Era uma humilhação constante. Dormia no mesmo quarto que as
outras meninas, muitas vezes no chão, enquanto elas atendiam.
Fiquei presa por dois
anos, vivendo à base de heroína para aguentar aquela vida. Muitos clientes
levavam drogas e eu aproveitava. Estava sempre louca, em outra realidade,
tentando fugir da minha. Por sorte, nem todos que consumiam o negócio eram
pessoas ruins. O pagamento era feito à cafetina antes de os clientes entrarem
no quarto, mas alguns deixavam uma caixinha para mim, normalmente 50 francos
suíços. Ninguém podia ver, senão eu seria morta. Por isso, guardava o dinheiro
em uma camisinha masculina e enfiava na vagina, bem lá no fundo.
"Arrisquei a vida
pela minha liberdade".
Comecei a perceber que
qualquer coisa seria melhor do que aquela vida. Aproveitei a sorte: um dia, a
cafetina e o marido saíram e esqueceram a porta destrancada. Não pensei duas
vezes: muito drogada, corri para o meio da rua e comecei a gritar pedindo para
ser deportada. Não deu outra: a polícia logo me encontrou e, como estava sob
efeito de drogas ilícitas, fui mandada de volta para o Brasil.
É claro que não
denunciei essa máfia para a polícia suíça. Se eu denunciasse, eles me matariam,
não importa onde. Não dá para mexer com isso.
Faz 17 anos que estou
de volta, mas o trauma ainda é grande. Hoje, trabalho como segurança em uma
balada LGBT. No entanto, continuei me prostituindo por bastante tempo. Com o
dinheiro, paguei um curso técnico --me formei em prótese dentária pelo Senac, fiz
outros cursos de gestão e, no ano que vem, quero fazer faculdade de psicologia.
Mas, antes, preciso entender e aceitar meus traumas, que não são só esses.
Abuso psicológico e
sexual pela família adotiva.
Nasci em uma família
muito pobre. Meus pais, eu e mais quatro irmãos morávamos em um barraco em
Capela do Socorro, no subúrbio paulistano. Minha mãe não trabalhava, meu pai
era alcoólatra e fazia alguns bicos como pedreiro. Passei minha infância
andando por bairros de classe alta de São Paulo pedindo comida e roupas. Quando
alguma família robusta doava roupas velhas dos filhos, me sentia no momento
mais feliz da minha vida.
Até que minha mãe
decidiu que seria melhor se tivéssemos outra vida. Uma das minhas irmãs morreu
afogada ainda bebê; outra foi vendida para uma família pelo equivalente a R$ 10
mil nos anos 1980. Eu e os outros dois fomos doados para famílias diferentes.
Fui criada por um grupo de pessoas desajustadas, fui abusada sexualmente e
judiada durante a infância.
Cheguei na casa dessa
família rica com dez anos para ser empregada doméstica em troca de estudos, mas
só me mantiveram na escola até a sexta série. Lá, moravam um casal sem filhos,
os pais e irmãos da mulher. Eram oito pessoas no total em uma casa grande, que
eu tinha que limpar sozinha.
"Ela raspou minha
cabeça e me fez desfilar de cueca".
A mulher, que seria
minha 'mãe', era alcoólatra. Ela foi um pesadelo na minha vida. Uma vez,
estávamos em uma festa infantil e eu pedi um copo de refrigerante. No dia
seguinte, ela me fez tomar dois litros de guaraná de uma vez na frente de todos
os parentes que estavam em casa. Eles riram e eu passei muito mal. Quando fiz
xixi na cama, ela me puniu: raspou minha cabeça e me fez desfilar de cueca para
os vizinhos verem. Parecia que ela tinha enfiado uma faca no meu peito, foi uma
dor absurda. Raspar o cabelo de uma criança é muita crueldade.
Certa vez, disse a ela
estava com coceira na vagina, eu tinha uns 12 anos. Bêbada, ela gritou que
'provavelmente você já aprontou por aí', me deitou na cama e enfiou o dedo em
mim. Eu chorei copiosamente. Ela era uma pessoa ruim. Quando completei 17 anos,
fugi de casa. Dormi na rua por três dias, fui abusada sexualmente sem nunca ter
tido contato com sexo. Foi quando decidi procurar uma casa de prostituição para
ter onde dormir e comer. Foi melhor do que a vida na casa daquela família.
Hoje, faço terapia e
quero ajudar as pessoas. A vida só começou para mim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário