FONTE: Henrique Contreiras, Especial para a Agência de Notícias da Aids (noticias.uol.com.br).
Há dois anos, o
antropólogo carioca João, 31 anos, teve uma relação sexual sem camisinha. No
dia seguinte, angustiado com a possibilidade de ter contraído HIV, ligou para
uma amiga para desabafar. Por ela, soube da profilaxia pós-exposição (PEP, do
inglês Post-Exposure Prophylaxis), uma espécie de "coquetel do dia
seguinte" que pode evitar a instalação do vírus se tomado em caráter de
emergência.
João foi a um
hospital privado de Copacabana, em busca dos remédios. "A médica disse que
não havia nada a fazer além de contar com a sorte". Ele não desistiu e
recorreu a uma clínica pública na Praça Onze, zona norte carioca, onde discutiu
com a equipe se deveria ou não tomar a PEP.
A médica de
Copacabana estava mal-informada. Porém, se a situação tivesse ocorrido cinco
anos atrás, de fato teria restado a João contar com a sorte. Somente em 2010 o
Ministério da Saúde liberou o método para situações como a dele: "sexo
ocasional com parceiro de sorologia para o HIV desconhecida".
No entanto, a PEP
existe há mais de vinte anos. O atraso em sua liberação e o desconhecimento
sobre o assunto são consequências do fato de que a medida sempre esteve envolta
em polêmica. Profilaxia, no jargão médico, é um termo para medida preventiva.
"Pós-exposição" se refere ao fato de que os remédios são iniciados
após um possível contato com o vírus. É o mesmo princípio da vacina contra
raiva após uma mordida por um cachorro que não se sabe se foi vacinado.
A PEP se baseia no
fato de que o vírus demora algumas horas até chegar às células imunológicas que
ataca, os linfócitos CD4. O uso imediato de remédios antirretrovirais – os
mesmos que compõem o coquetel tomado pelo soropositivo – pode blindar os
linfócitos e abortar a infecção. A medicação deve ser iniciada em até 72 horas,
mas quanto antes, melhor. A duração da profilaxia é de 28 dias.
Quando surgiu, no fim dos anos 80, a PEP era usada exclusivamente por profissionais de saúde expostos a sangue de pacientes com HIV – ao se ferirem acidentalmente com uma agulha contaminada, por exemplo. Por analogia, a PEP foi logo estendida para vítimas de estupro.
"Desinibição do
comportamento".
A polêmica surgiu no
momento de incluir o sexo cotidiano, quando a camisinha rompe, ou simplesmente
não é usada – ou sexo consensual, como foi chamado em oposição à violência
sexual. Segundo Alexandre Grangeiro, pesquisador da USP e ex-coordenador do
programa de Aids do Ministério da Saúde (foto esquerda), "por razões
humanitárias, não havia como negar a PEP para quem sofreu violência sexual. Mas
para a população em geral se colocou uma restrição porque se temia uma
desinibição no comportamento, um excesso de medicalização e o surgimento de
vírus resistentes. Esses pressupostos ao longo do tempo foram vistos como
falsos".
Especialistas e
governos temiam que as pessoas trocassem o preservativo pela PEP e que fossem
buscar o serviço de forma repetida. Efeitos colaterais e surgimento de vírus
resistentes – questões que tinham menos importância se a medida fosse restrita
a eventualidades como acidentes e estupros – se tornariam reais motivos de
preocupação no caso de um uso amplo e irrestrito da PEP.
Além disso, se fosse
verdade que a mera existência da PEP incentivasse as pessoas a abandonarem a
camisinha, era possível que, no fim das contas, uma coisa compensasse a outra e
o número de infecções na população se mantivesse igual. Os especialistas que
defendiam a ampliação da PEP argumentavam que, além de evitar infecções, a
profilaxia aproximaria as pessoas dos serviços de saúde – e, portanto, da
informação sobre prevenção e da testagem. Além disso, encarar as consequências
de um ato sexual desprotegido poderia levar as pessoas a refletir sobre suas
práticas sexuais.
A pesquisa do Rio de
Janeiro.
Para responder a
essas questões, várias pesquisas sobre PEP sexual foram realizadas entre o fim
dos anos 90 e a primeira metade dos anos 2000. No entanto, os cientistas
tiveram que enfrentar obstáculos metodológicos. Primeiro, de ordem ética, já
que os indícios de que a PEP funcionava em outras situações impossibilitava a
realização de estudos comparando o remédio com placebo (uma pílula sem efeito)
– que é o tipo de pesquisa médica que produz os resultados mais
inquestionáveis.
Além disso, havia problemas logísticos relacionados ao tema do sexo. Para o caso da PEP para acidentes ocupacionais tinha sido mais fácil. Um estudo em 1997 baseado em registros de prontuários validou a medida, depois de anos de uso sem comprovação científica. Sexo, porém, não se registra em prontuário.
Some-se a isso o fato
de que o meio científico não estava imune à polêmica causada pelo método.
Segundo Mauro Schechter (foto abaixo), médico infectologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a noção de que a PEP incentivava sexo sem proteção gerou reações negativas no meio e tornou difícil a obtenção de patrocínio para uma pesquisa de grande porte. "Para fazer um estudo de eficácia, seriam necessários 2.000 voluntários e muitos milhões de dólares. Mas o fabricante relutou em fornecer a medicação com medo de ser visto como uma empresa que estivesse estimulando comportamento de risco para vender remédio", afirmou.
O grupo de Schechter
decidiu por abordar a questão de outra forma. "Decidimos fazer um primeiro
estudo para mostrar que não haveria o aumento do comportamento de risco".
Em 2004, foi publicada uma pesquisa que acompanhou 200 homens gays por dois
anos e que ajudou a derrubar o mito de que as pessoas usariam menos camisinha
se tivessem acesso à profilaxia, além de demonstrar a segurança dos remédios em
termos de efeitos colaterais.
Embora não tenha sido
desenhada para provar que a PEP sexual de fato prevenia infecções, a pesquisa
carioca mostrou uma diferença no número de infecções entre os que tomaram e os
que não tomaram PEP. Os dados acabaram sendo considerados os mais fortes
indícios disponíveis na literatura mundial a respeito da eficácia da PEP em
situações de sexo consensual, já que um estudo de eficácia metodologicamente
adequado acabou nunca sendo realizado.
Por outro lado, a
pesquisa mostrou que o número geral de infecções na população geral não foi
menor do que seria caso não houvesse a PEP. Ou seja, ainda que pudesse trazer
benefício individualmente, o impacto como medida de saúde pública não parecia
importante. A razão é que as pessoas continuavam se expondo sem recorrer à
medida. O artigo questiona, com ceticismo, se a oferta de mais educação aos
voluntários poderia mudar esse quadro.
Dissenso entre países.
Gestores em todo o
mundo tiveram que decidir sobre a adoção da PEP sexual pesando os prós e os
contras das informações científicas disponíveis. A realidade local de cada país
influenciou nessa decisão, e o resultado foi uma diversidade de atitudes em
relação à PEP sexual.
Alguns países
liberaram para o sexo consensual. Na vanguarda, a província canadense do
Quebeque já o tinha feito em 1999 e a Austrália em 2001. A partir de 2005,
Estados Unidos, Reino Unido e outros países europeus publicaram suas
diretrizes, citando o estudo carioca.
Seguindo estudos de
custo-benefício da PEP, estes países adotaram um cálculo de risco para guiar a
decisão sobre quando oferecer a profilaxia. O cálculo se baseava em dois
critérios: o tipo de prática sexual e o perfil do parceiro. Penetração anal por
um parceiro pertencente a um grupo com altas taxas de infecção, por exemplo,
era considerada uma situação de alto risco e merecedora de PEP.
A maior parte dos
países do Sul global, no entanto, manteve a PEP para sexo consensual na
geladeira. Essa também foi a postura da Organização Mundial da Saúde (OMS), que
tem forte influência sobre as políticas de saúde dos países em desenvolvimento.
Em sua última diretriz sobre o tema, de 2007, a PEP é recomendada somente para
acidente ocupacional e estupro.
Para muitos países
das regiões mais atingidas pela epidemia, como África Austral e Ocidental, a
questão econômica influenciou. Não havia distribuição de antirretrovirais
sequer para os doentes avançados de aids. Não havia como pensar em um programa
amplo de PEP sexual em tal contexto.
"Só se for por uma questão moral".
O Brasil, no entanto,
tinha uma situação particular. Não havia do que se queixar do ponto de vista
econômico – pelo menos no que se refere ao investimento em assistência
farmacêutica. Tinha sido o primeiro país a ofertar antirretrovirais
gratuitamente, boa parte dos quais produzidos localmente. No entanto, o país
não adotou de imediato a PEP para sexo consensual.
Segundo Grangeiro,
"alguns grupos de homossexuais e de pessoas vivendo com HIV alertavam para
essa contradição: uma população sem acesso a um recurso que sabidamente poderia
trazer beneficio. Por que oferecer para uma vítima de violência sexual e não
oferecer para gays e profissionais do sexo? Só se for por uma questão
moral".
Ativistas denunciavam
que por trás da relutância do governo haveria uma atitude julgadora em relação
a um comportamento sexual diferente da norma e que a restrição seria uma
violação de um direito.
Mário Scheffer,
pesquisador da USP e ativista do grupo PelaVidda São Paulo, destaca o viés
moralista na aplicação da medida ao dizer que "a PEP é uma política seletiva,
que divide a população em duas categorias, os merecedores, que se expuseram por
acidente, e os não merecedores, que se expuseram por prazer". O
pesquisador afirmou que desde 1996 os ativistas questionaram as restrições.
Segundo Márcio
Villard, ativista do PelaVidda Rio de Janeiro, as organizações da sociedade
civil participaram ativamente da elaboração das normas técnicas que definiram a
ampliação do acesso, que se deu em duas etapas.
Liberação gradual.
Em 2006, o Ministério
da Saúde liberou a PEP para casais sorodiscordantes, ou seja, para pessoas
negativas que se relacionassem com um soropositivo. Segundo Denize Lotufo (foto
abaixo, à direita), médica infectologista e gerente de Assistência da
Coordenação Estadual de Aids de São Paulo, "o consenso de 2006 tinha uma
alusão bem discreta ao casal sorodiscordante. Nós começamos a fazer aqui, mas
nos damos conta que as pessoas não se apropriaram disso".
Sobre os casos em que
o parceiro é de sorologia desconhecida, a norma de 2006 dizia que a profilaxia
"deve ser muito bem avaliada" e que "muitas pessoas que procuram
os serviços após possível exposição, o fazem por não manter práticas efetivas
de redução do risco". O tom vago e a generalização sobre a comportamento
dos que procuram a PEP – sem referência a nenhuma pesquisa que a comprovasse –
claramente desencorajava o uso do método.
A norma de 2010, em contrapartida, é peremptória ao afirmar que a PEP deve ser usada mesmo quando o parceiro tem sorologia desconhecida, caso o risco calculado seja alto – condutas que foram baseadas nas diretrizes do Reino Unido. Por exemplo, se a pessoa foi penetrada em uma relação anal por um parceiro pertencente a um grupo com altas taxas de HIV, a PEP é "recomendada". Se a penetração foi vaginal, e o parceiro também de maior risco, a PEP deve ser "considerada".
A norma de 2010, em contrapartida, é peremptória ao afirmar que a PEP deve ser usada mesmo quando o parceiro tem sorologia desconhecida, caso o risco calculado seja alto – condutas que foram baseadas nas diretrizes do Reino Unido. Por exemplo, se a pessoa foi penetrada em uma relação anal por um parceiro pertencente a um grupo com altas taxas de HIV, a PEP é "recomendada". Se a penetração foi vaginal, e o parceiro também de maior risco, a PEP deve ser "considerada".
Porém, a normatização
da PEP sexual foi mais real do que formal e não teve um efeito imediato na
prática, segundo os especialistas ouvidos. Este ano, contudo, o Ministério da
Saúde sinalizou que a PEP enfim se tornou uma prioridade – em conjunto com os
novos métodos preventivos baseados em remédios que revolucionaram as políticas
mundiais de aids nos últimos três anos, como a profilaxia pré-exposição (PrEP)
e o tratamento como prevenção.
A mudança de atitude
do governo não foi motivada por novas evidências científicas sobre o velho
método. Ao que parece, a partir do momento em que os países do Norte aceitaram
os indícios de eficácia gerados por pesquisas como a da UFRJ como base para
suas políticas públicas, os esforços da comunidade científica em gerar
evidências de maior contundência arrefeceram.
A liberação da PEP no
Brasil pode ser melhor explicada por motivos políticos, por uma mudança do
equilíbrio entre os que argumentam contra e a favor. A recente priorização foi
na esteira das mudanças no campo do HIV.
A relativa lentidão
do processo no país ocorreu às custas de algumas infecções que poderiam ter
sido evitadas. A trajetória da PEP sexual é um exemplo de como a produção e a
disponibilização dos avanços científicos são atravessadas por aspectos nada
objetivos como tabu e política. A história da aids – esse tema difícil que
envolve sexo e minorias – está recheada de episódios semelhantes.
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