FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
Até hoje não existe consenso absoluto sobre quais seriam os critérios e princípios preponderantes para resolver a colisão que se estabelece entre os direitos e garantias individuais do investigado (personalidade, privacidade, intimidade, imagem, reputação etc.), a presunção de inocência e o sigilo das investigações, de um lado, e a liberdade de imprensa (liberdade de expressão, mais direito da população de ser informada etc.), de outro.
A imprensa pode publicar tudo o que ela quiser, enquanto ainda tramita a investigação (ou seja: enquanto o agente é presumido inocente)? E se o juiz decretou segredo de Justiça, ainda assim, pode haver divulgação de fatos e dados relacionados com a investigação? Quais devem predominar: os direitos do investigado ou os direitos coligados à liberdade de imprensa (direito de publicar fatos, ideias, dados, liberdade de expressão, direito da população de ser informada etc.)?
Não existe regra segura nessa área. Cada caso é um caso, impondo-se ora a preponderância dos interesses do investigado, ora o predomínio dos interesses da mídia. Tudo depende do caso concreto. Sabe-se que os dados e informações privados das pessoas públicas (assim como seus direitos: honra, imagem, privacidade, intimidade etc.) contam com menor tutela jurídica que os dos particulares.
A liberdade de imprensa está constitucionalmente garantida nestes termos: “Artigo 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
Parágrafo 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
Parágrafo 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Constitui terreno extremamente pantanoso (incerto, pouco delimitado) o consistente em estabelecer limites à liberdade de imprensa, à admissão (ou não) de censura etc. Essa polêmica se instaurou de modo retumbante (e continua) no instante em que um desembagador do Distrito Federal proibiu o jornal O Estado de S. Paulo de divulgar dados e informações sigilosas sobre o investigado Fernando Sarney.
A controvérsia foi parar no Supremo Tribunal Federal (Rcl 9.428-DF, rel. Min. Cezar Peluso, j. 10.12.09) que, por maioria, “não conheceu de reclamação —julgando-a extinta sem julgamento de mérito— proposta por empresa jornalística contra decisão de Turma Cível do TJ-DF (Tribunal de Justiça do Distrito Federal), que, nos autos de agravo de instrumento, se declarara absolutamente incompetente para apreciar o recurso, reconhecendo conexão com decisão que decretara a quebra de sigilo telefônico proferida por juiz federal no Estado do Maranhão, mantendo, porém, com base no poder geral de cautela, decisão liminar do relator original da causa, qual seja, ação inibitória de publicação de dados sigilosos sobre o autor e contidos em pendente investigação policial”.
Sabe-se que o STF, por maioria, acabou entendendo que a matéria submetida à sua apreciação não tinha relacionamento (nenhum) com a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 130-DF, onde se julgou não recepcionada (integralmente) a lei de imprensa. Daí o não cabimento (no entender daquela maioria) da reclamação proposta.
Ou seja: foi uma questão formal que impediu o conhecimento da reclamação. Isso significa que os problemas de fundo (sigilo da investigação, presunção de inocência, direitos do investigado, tais como honra, imagem, privacidade, intimidade etc., liberdade de imprensa, liberdade de informar, direito da população à informação, censura etc.) não foram desta vez enfrentados pela nossa Suprema Corte. A não ser um deles que foi a ratificação do poder geral de cautela do juiz, que pode (de acordo com a maioria da Corte Excelsa), em ação inibitória de publicação de dados sigilosos, contidos em investigação pendente, impedir essa divulgação, visando à tutela dos direitos privados do investigado.
Na ementa da decisão do STF não se vê a invocação da presunção de inocência de forma explícita, mas não há dúvida nenhuma de sua pertinência no assunto porque ninguém pode ser tratado como culpado enquanto não advém sentença final com trânsito em julgado.
Impõe-se observar que, concretamente, ela se enlaça com muitos outros direitos e garantias do investigado, tais como a inviolabilidade constitucional dos direitos da personalidade, especialmente o da privacidade, a necessária proteção do sigilo legal de dados obtidos por interceptação judicial de comunicações telefônicas, velados por segredo de justiça, etc.
Em casos como o analisado pelo STF não se pode estabelecer um simples contraste teórico e linear entre os direitos fundamentais garantidos nos artigos 5º, X, e 220, caput, da Constituição Federal, porque eles também envolvem a garantia da inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, previsto no artigo 5º, XII, da Constituição Federal, e assegurado por segredo de justiça imposto em decisão judicial. Como se vê, a sua complexidade é muito mais profunda do que parece.
Registre-se ainda (como bem proclamou o Min. Relator) a pertinência da tipificação penal da violação e divulgação de dados sigilosos oriundos de interceptação telefônica autorizada judicialmente, consoante preceituam os artigos 8° e 10 da Lei federal 9.296/96, e o artigo 153, parágrafo 1°-A, do Código Penal. Ficaram vencidos os ministros Carlos Britto, Cármen Lúcia e Celso de Mello, que conheciam da reclamação por perceber clara relação de identidade entre o conteúdo do ato que se questionava na reclamação e os fundamentos constantes do acórdão invocado como paradigma.
A polêmica sobre os limites da liberdade de imprensa, sobretudo quando se considera o princípio da presunção de inocência, seguramente, ainda irá se estender por longo período. De qualquer modo, de tudo quanto decidiu o STF, por maioria (Rcl 9.428-DF, rel. Min. Cezar Peluso, j. 10.12.09), fazendo-se abstração do caso concreto enfocado, a lição (jurídica) que dela podemos extrair é a seguinte: não está o juiz, de acordo com o direito vigente, impedido de usar seu poder geral de cautela para, em casos excepcionalíssimos, amparar os direitos do investigado, presumido inocente, que se transforma em vítima quando eventualmente possa ser constatado patente abuso do direito de informação.
*** Luiz Flávio Gomes é mestre em direito penal pela USP e doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madrid. Foi promotor de Justiça em São Paulo de 1980 a 1983 e juiz de direito em São Paulo de 1983 a 1998. É professor honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria (Arequipa, Peru) e professor de vários cursos de pós-graduação, dentre eles o da Facultad de Derecho de la Universidad Austral (Buenos Aires, Argentina) e o da Unisul (SC). É consultor do Iceps (International Center of Economic Penal Studies), em New York, e membro da Association Internationale de Droit Penal (Pau-França). É diretor-presidente da Rede LFG (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes), que promove cursos telepresenciais com transmissão ao vivo e em tempo real para todo país. É autor de vários entre eles: Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, Penas e Medidas Alternativas à Prisão e Presunção de Violência nos Crimes Sexuais.
A imprensa pode publicar tudo o que ela quiser, enquanto ainda tramita a investigação (ou seja: enquanto o agente é presumido inocente)? E se o juiz decretou segredo de Justiça, ainda assim, pode haver divulgação de fatos e dados relacionados com a investigação? Quais devem predominar: os direitos do investigado ou os direitos coligados à liberdade de imprensa (direito de publicar fatos, ideias, dados, liberdade de expressão, direito da população de ser informada etc.)?
Não existe regra segura nessa área. Cada caso é um caso, impondo-se ora a preponderância dos interesses do investigado, ora o predomínio dos interesses da mídia. Tudo depende do caso concreto. Sabe-se que os dados e informações privados das pessoas públicas (assim como seus direitos: honra, imagem, privacidade, intimidade etc.) contam com menor tutela jurídica que os dos particulares.
A liberdade de imprensa está constitucionalmente garantida nestes termos: “Artigo 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
Parágrafo 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
Parágrafo 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Constitui terreno extremamente pantanoso (incerto, pouco delimitado) o consistente em estabelecer limites à liberdade de imprensa, à admissão (ou não) de censura etc. Essa polêmica se instaurou de modo retumbante (e continua) no instante em que um desembagador do Distrito Federal proibiu o jornal O Estado de S. Paulo de divulgar dados e informações sigilosas sobre o investigado Fernando Sarney.
A controvérsia foi parar no Supremo Tribunal Federal (Rcl 9.428-DF, rel. Min. Cezar Peluso, j. 10.12.09) que, por maioria, “não conheceu de reclamação —julgando-a extinta sem julgamento de mérito— proposta por empresa jornalística contra decisão de Turma Cível do TJ-DF (Tribunal de Justiça do Distrito Federal), que, nos autos de agravo de instrumento, se declarara absolutamente incompetente para apreciar o recurso, reconhecendo conexão com decisão que decretara a quebra de sigilo telefônico proferida por juiz federal no Estado do Maranhão, mantendo, porém, com base no poder geral de cautela, decisão liminar do relator original da causa, qual seja, ação inibitória de publicação de dados sigilosos sobre o autor e contidos em pendente investigação policial”.
Sabe-se que o STF, por maioria, acabou entendendo que a matéria submetida à sua apreciação não tinha relacionamento (nenhum) com a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 130-DF, onde se julgou não recepcionada (integralmente) a lei de imprensa. Daí o não cabimento (no entender daquela maioria) da reclamação proposta.
Ou seja: foi uma questão formal que impediu o conhecimento da reclamação. Isso significa que os problemas de fundo (sigilo da investigação, presunção de inocência, direitos do investigado, tais como honra, imagem, privacidade, intimidade etc., liberdade de imprensa, liberdade de informar, direito da população à informação, censura etc.) não foram desta vez enfrentados pela nossa Suprema Corte. A não ser um deles que foi a ratificação do poder geral de cautela do juiz, que pode (de acordo com a maioria da Corte Excelsa), em ação inibitória de publicação de dados sigilosos, contidos em investigação pendente, impedir essa divulgação, visando à tutela dos direitos privados do investigado.
Na ementa da decisão do STF não se vê a invocação da presunção de inocência de forma explícita, mas não há dúvida nenhuma de sua pertinência no assunto porque ninguém pode ser tratado como culpado enquanto não advém sentença final com trânsito em julgado.
Impõe-se observar que, concretamente, ela se enlaça com muitos outros direitos e garantias do investigado, tais como a inviolabilidade constitucional dos direitos da personalidade, especialmente o da privacidade, a necessária proteção do sigilo legal de dados obtidos por interceptação judicial de comunicações telefônicas, velados por segredo de justiça, etc.
Em casos como o analisado pelo STF não se pode estabelecer um simples contraste teórico e linear entre os direitos fundamentais garantidos nos artigos 5º, X, e 220, caput, da Constituição Federal, porque eles também envolvem a garantia da inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, previsto no artigo 5º, XII, da Constituição Federal, e assegurado por segredo de justiça imposto em decisão judicial. Como se vê, a sua complexidade é muito mais profunda do que parece.
Registre-se ainda (como bem proclamou o Min. Relator) a pertinência da tipificação penal da violação e divulgação de dados sigilosos oriundos de interceptação telefônica autorizada judicialmente, consoante preceituam os artigos 8° e 10 da Lei federal 9.296/96, e o artigo 153, parágrafo 1°-A, do Código Penal. Ficaram vencidos os ministros Carlos Britto, Cármen Lúcia e Celso de Mello, que conheciam da reclamação por perceber clara relação de identidade entre o conteúdo do ato que se questionava na reclamação e os fundamentos constantes do acórdão invocado como paradigma.
A polêmica sobre os limites da liberdade de imprensa, sobretudo quando se considera o princípio da presunção de inocência, seguramente, ainda irá se estender por longo período. De qualquer modo, de tudo quanto decidiu o STF, por maioria (Rcl 9.428-DF, rel. Min. Cezar Peluso, j. 10.12.09), fazendo-se abstração do caso concreto enfocado, a lição (jurídica) que dela podemos extrair é a seguinte: não está o juiz, de acordo com o direito vigente, impedido de usar seu poder geral de cautela para, em casos excepcionalíssimos, amparar os direitos do investigado, presumido inocente, que se transforma em vítima quando eventualmente possa ser constatado patente abuso do direito de informação.
*** Luiz Flávio Gomes é mestre em direito penal pela USP e doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madrid. Foi promotor de Justiça em São Paulo de 1980 a 1983 e juiz de direito em São Paulo de 1983 a 1998. É professor honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria (Arequipa, Peru) e professor de vários cursos de pós-graduação, dentre eles o da Facultad de Derecho de la Universidad Austral (Buenos Aires, Argentina) e o da Unisul (SC). É consultor do Iceps (International Center of Economic Penal Studies), em New York, e membro da Association Internationale de Droit Penal (Pau-França). É diretor-presidente da Rede LFG (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes), que promove cursos telepresenciais com transmissão ao vivo e em tempo real para todo país. É autor de vários entre eles: Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, Penas e Medidas Alternativas à Prisão e Presunção de Violência nos Crimes Sexuais.
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