Você
já deve ter lido por aí que tal medicamento ou tratamento ainda precisava passar por testes clínicos
antes de ser aprovado e chegar ao mercado, certo? Mas o que exatamente isso
significa?
Para
entender melhor como a ciência coloca à prova uma hipótese ou uma novidade
terapêutica, por exemplo, proponho que a gente volte no tempo para o que foi
provavelmente o primeiro teste clínico da história.
O
ano era 1746, quando James Lind, um cirurgião experiente responsável pela
tripulação de um navio da Marinha britânica passou do anonimato para… o
anonimato! Pois é, quase ninguém sabe quem foi James Lind até hoje. No entanto,
ele pode ser considerado o pioneiro na aplicação do método científico para
investigar a causa de uma doença.
Em
meados do século 18, a medicina atribuía todos os problemas de saúde a um
desequilíbrio dos “humores”. Acreditava-se que o corpo humano era composto por
quatro humores: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra. E estes,
por sua vez, correspondiam também aos quatro elementos da natureza (terra, fogo,
ar e água) e às estações do ano.
Quando
esses humores estavam em desequilíbrio, o indivíduo ficava doente — daí a
expressão “mal-humorado”. E, para curá-lo, obviamente bastava equilibrar… os
humores. Nesse contexto, era comum se recorrer a sangria e métodos purgativos
com o intuito de provocar diarreia e vômitos. Os médicos acreditavam que toda
doença era causada por um bloqueio ou excesso de um dos humores. Lembremos que
nessa época ainda não havia o conhecimento sobre a importância de métodos de
higiene e nutrição, nem se sabia que algumas doenças podiam ser transmitidas
por micro-organismos.
Um
estudo em alto-mar.
As
grandes navegações foram marcadas pela presença de uma doença cruel e mortal, o
escorbuto. Quem trabalhava nos barcos corria grande risco de padecer desse mal.
Até então, se acreditava que ele era fruto de um desequilíbrio dos humores,
particularmente da bile negra, associada a letargia e preguiça. De fato, a
sonolência e o cansaço eram sintomas do escorbuto, além das gengivas
enegrecidas e manchas negras pelo corpo. Os médicos e cirurgiões de então
prescreviam sangria, purgação e trabalho duro para contrabalançar a moleza dos
acometidos. Coitados dos marinheiros!
James
Lind foi o primeiro a questionar se tudo aquilo fazia sentido e resolveu juntar
toda a informação que havia sobre o escorbuto até então. Grande parte estava
descrita em diários de bordo, e Lind encontrou descrições de cura com sucos de
frutas e vegetais frescos, feitas por quatro cirurgiões de bordo durante a
Guerra dos Sete Anos (1756-1763), conflito envolvendo algumas das monarquias
europeias da época.
Assim,
com a autorização do capitão de seu navio, Lind desenhou seu primeiro
experimento, com 12 marinheiros em estágio avançado da doença. Os marujos foram
divididos em seis grupos, e cada par foi alimentado com a mesma dieta básica,
ficou alojado no mesmo local e recebeu os mesmos cuidados. Dois receberam um
quarto de copo de cidra por dia. Outros dois receberam vitriol, uma combinação
de sulfatos. Um par recebeu uma colher de vinagre. Outro par recebeu 150
mililitros de água do mar… Finalmente, um par recebeu um limão e duas laranjas por dia, e o último par recebeu um preparado de noz moscada.
Depois
de seis dias, o suprimento de limões e laranjas acabou, mas o período já havia
sido suficiente para perceber que os marinheiros que receberam as frutas foram
os que apresentaram a melhor recuperação.
O
que Lind fez foi o que chamamos hoje de teste clínico controlado e randomizado.
Basicamente, ele separou os doentes em grupos e testou cada grupo com um
“remédio” diferente, garantindo que todas as outras condições fossem iguais. Se
fosse hoje em dia, ele teria acrescentado também um grupo controle, isto é,
dois marinheiros que não receberiam tratamento algum, e um grupo placebo, no
qual os marinheiros receberiam uma substância inerte, como água, por exemplo.
Outro
fator que aplicamos hoje em dia chama-se “cegar” os participantes, assegurando
que não saibam qual remédio estão recebendo, para não influenciar o resultado
do teste. Quando “cegamos” o médico também, para que ele também não saiba qual
paciente está recebendo qual remédio, o teste é chamado de “duplo-cego”. Foi
assim que depois nasceu o teste clínico controlado, randomizado, com grupo
placebo e duplo-cego! Essa metodologia assegura que os medicamentos e
tratamentos aprovados sejam realmente eficazes e funcionem para todos.
Mesmo
após o sucesso experimental de Lind, demorou 40 anos para que a Marinha
Britânica adotasse as frutas cítricas como forma de prevenir o escorbuto — a descoberta do
cirurgião foi recebida, a princípio, com muito ceticismo pela comunidade
médica.
O
escorbuto continuou a fazer suas vítimas, dizimando até 80% das tripulações das
grandes navegações até 1795, quando Sir Gilbert Blane foi nomeado médico-chefe
da Frota britânica. Sir Blane era um acadêmico respeitado e tinha agora o poder
para testar novamente a hipótese de Lind, que ele já conhecia. Durante uma
viagem de 23 semanas para a Índia, ele estabeleceu que todos os marinheiros
receberiam uma bebida feita de rum, água, açúcar e suco de limão – reparem que
ele pode ter sido o inventor da caipirinha!
No
trajeto, apenas alguns marinheiros apresentaram sintomas de escorbuto, mas
foram tratados com porções extras de limão e logo estavam curados. Depois dessa
viagem, ficou estabelecido que todos os navios ingleses levariam um suprimento
de limões e os próprios ingleses ficaram conhecidos como “limeys” durante um
bom tempo.
Dos
séculos 18 ao 19, o escorbuto matou mais marinheiros do que a soma de todas as
batalhas navais, tormentas e demais doenças. E sua cura jamais teria sido
descoberta se um cirurgião naval não tivesse usado o método científico para
investigar sua causa — bem mais tarde pesquisadores descobriram que o problema
é causado pela deficiência severa de vitamina C, nutriente que se
encontra em abundância nas frutas cítricas.
Graças
aos “limeys” Lind e Blane, foi dado o pontapé para os tão importantes estudos
clínicos. Dessa história toda só me fica uma dúvida cruel: afinal, de quem é o
legítimo crédito pela invenção da caipirinha?
*** Dra. Natalia Pasternak
Taschner é bióloga, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da
Universidade de São Paulo e coordenadora dos projetos Cientistas Explicame Pint of Scienceno
Brasil
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