sábado, 20 de fevereiro de 2010

DIREITOS HUMANOS PARA TER BASTA SER?...

FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
Na semana passada foi lançado um vídeo da campanha do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, pertencente à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, ou seja, um vídeo do governo sobre direitos humanos.
Governo, como empregado aqui, não tem conotação partidária, não é um vídeo de um partido específico, como outras propagandas veiculadas na TV. A expressão governo, como utilizada, busca ressaltar o aspecto institucionalizado do referido vídeo. Vale dizer, busca traduzir aos espectadores, via comunicação de massa, como devem ser compreendidos os direitos humanos.
O vídeo é impecável como campanha, pois o narrador vai construindo um conceito do que sejam direitos humanos, enquanto se vê pessoas de diferentes idades, cores e de origem cultural diversa, como demonstram roupas e cenário, apresentadas em situações diversas de relações sociais e de cidadania. Qualquer um de nós poderia ser uma daquelas pessoas. Enquanto as pessoas aparecem, um dos personagens puxa um cartaz que traduz o anseio individual, iniciando sempre com o verbo “ser”.
A conclusão final é o título do vídeo “Direitos Humanos: para ter basta ser”, inferindo que o único requisito para o exercício dos chamados direitos humanos é ser justamente um ser humano.
Tudo muito bonito, pois basta ser humano para se ter direitos humanos. Contudo, será que essa afirmativa é verdadeira?
Algumas reflexões são possíveis diante do vídeo, principalmente ao se lembrar que o pressuposto principal da sociedade de hoje é que ela é uma sociedade de mercado e, portanto, de consumo. Que significa ser um “ser humano” numa sociedade de consumo?
A própria expressão “ter” do título do vídeo já indica que “direitos humanos” é algo que se possui, como uma propriedade, cuja condição de posse é “ser”. O indicativo de consumo já pode ser observado logo de início por um olhar mais atento.
Por que “ter” e não “vivenciar”? A diferença não é mero exercício retórico, pois nela escondem-se diferentes concepções de ser humano.
Normalmente, utilizam-se as expressões sujeito, indivíduo, cidadão, pessoa, como sinônimos todos de ser humano e esta vem sendo compreendida de modo diferente ao longo da história.
Embora não tenha sido sempre assim, mais recentemente se confunde ser humano com a idéia de sujeito, denunciada a negatividade de tal visão por autores como Foucault, Habermas e Morin.
A expressão sujeito indica um dos modos de visão sobre e do ser humano, estabelecida a partir do século XVII com Descartes, pensador francês, que definiu o ser humano como um ser pensante, ou melhor, como algo que pensa. É dele a conhecida expressão "penso, logo existo", significando sinteticamente que a característica básica do ser humano é o pensar. A atividade do pensamento é realizada pela razão, logo o ser humano é o ser racional, ou seja, aquele que usa a razão ou que dela pode dispor independente de qualquer outra característica ou qualidade. Como a razão se situa na mente, o ser humano divide-se em mente e corpo e também em espírito e físico, em razão e emoção. Assim, o sujeito é fundado numa bidimensionalidade dada por uma estrutura racional que se opõe a uma estrutura sentimental, esta fornecida pelas sensações do corpo e aquela pelos pensamentos da mente.
Como sujeito, o ser humano é um ser dividido, que sintetiza em si mesmo toda sua verdade, a qual se funda e se constrói em seu pensamento. O importante no fim é sempre o pensamento, o guia da razão e, portanto, de toda existência humana. O sentimento é algo deficiente, que perturba a vida humana, devendo sempre ser controlado.
Como a verdade está no pensamento e cada um tem seu próprio pensamento, cada um é dono de sua verdade, sendo todas as coisas em sociedade resolvidas por um critério de maioria, a maioria que pensa racionalmente.
O ser humano assim é uma individualidade, pois é dono de seu pensamento, mas não uma unidade, posto que dividido em si mesmo entre razão e emoção. A sociedade resultante disto é uma união de seres individualistas que resolvem todos seus conflitos por maioria de decisões.
Esta ideia é fundamental para a manutenção da sociedade de consumo, visto que se se ganha a sociedade e perde-se a comunidade, pois os laços comuns deixam de existir, com efeito, porque, como cada um é o dono de sua verdade, não existem mais verdades comuns. Não existem mais valores universais dentro de uma comunidade, ou seja, não existem mais situações de relevância que sejam vistas como importantes, em comunhão, num mesmo espaço social. Não há mais um conjunto de valores comuns a se vivenciar, a se comungar, a se dividir numa comunidade, porque não há mais comunidade.
Daí a necessidade de direitos humanos como bens, ou seja, como um conjunto de “direitos universais que foram criados para preservar a vida e a dignidade”, no dizer da propaganda. Em virtude de nada mais haver de comum, direitos humanos precisam ser criados para serem “tidos”, possuídos, como um bem qualquer. E a pergunta subsequente “sabe o que é preciso para que você tenha acesso a esses direitos” nasce quase naturalmente. Que é preciso ter para acessar os direitos humanos? A questão é tão natural que é até difícil refletir sobre ela. “Basta ser humano” e todos os personagens do vídeo aparecem com as placas “ser humano”. Para ter basta ser.
Direitos humanos não são tidos, porque não são adquiridos, não são propriedade, não são bens, não são mercadoria. Direitos humanos são vivenciados por seres que vivem em comunidade. O ser humano é o ser que vive em comunidade, buscando sempre a compreensão de seu viver, a qual é obtida somente na alteridade. Simples de enunciar, o que não quer dizer fácil de traduzir e apreender. A limitação do espaço e o respeito à generosidade do leitor, que acompanhou o texto até agora, pedem que outras ponderações sejam elaboradas em futuro momento oportuno.

*** João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. Especialista em direito penal, pós-graduado em filosofia e mestre em filosofia do direito, foi delegado de Polícia e coordenador da Assessoria Jurídica da Febem. Atualmente é membro efetivo da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP, além de professor assistente e coordenador de núcleo de pesquisa da PUC-SP.

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