Vinte e três estados
americanos e o distrito de Columbia legalizaram a maconha medicinal, mas a
pesquisa científica sobre seus usos mais apropriados ainda está defasada. O
doutor Mark Ware gostaria de mudar isso. Ware, de 50 anos, é diretor do
Consórcio Canadense de Investigação dos Canabinóides e diretor de pesquisas
clínicas da Unidade de Gestão da Dor Alan Edwards, do Centro de Saúde da
Universidade McGill. A maconha medicinal é legal no Canadá há 16 anos, e Ware,
médico praticante, estuda como seus pacientes usam a droga e em que condições
ela funciona.
Conversamos por duas
horas no recente encontro da Associação Americana para o Avanço da Ciência e
depois por telefone. Nossas entrevistas foram condensadas e editadas por causa
do espaço.
Como surgiu
seu interesse pelas possibilidades médicas da cannabis?
No final dos anos
1990, estava trabalhando em Kingston, na Jamaica, em uma clínica tratando
pessoas com anemia falciforme. Meu pai inglês e minha mãe da Guiana me criaram
na Jamaica e fui para a faculdade de medicina lá.
Um dia, um rastafári
idoso veio para seu check-up anual. Eu perguntei: "Que remédios você
usa?" Ele se apoiou na mesa e disse: "Você precisa estudar a
erva".
Naquela noite, voltei
ao meu escritório e procurei "cannabis e dor". O que encontrei foram
inúmeras anedotas de pacientes que usaram maconha, legalmente ou não, e
afirmavam ter conseguido bons resultados em uma grande variedade de condições
relacionadas à dor.
Havia também estudos
reveladores mostrando que o sistema nervoso tem receptores específicos para os
canabinóides e que esses receptores estavam em áreas relacionadas à dor. Tudo
terminava com "são necessários mais estudos".
Então pensei: "É
isso que eu deveria estar fazendo. Vamos lá!"
O começo foi
fácil?
Na verdade, não.
Naquele verão, fui
para a Inglaterra e pensei em trabalhar com uma empresa farmacêutica britânica
que estava pesquisando canabinóides. Então, no mesmo momento, uma corte
canadense julgou o caso de um epilético que havia sido preso quando usava
cannabis para suas convulsões. Essencialmente, o que aconteceu foi que a corte
legalizou a maconha medicinal em todo Canadá.
Quando ouvi aquilo,
percebi que devia ir para o Canadá. Reuni minha família e nos mudamos para
Montreal. Propus para a McGill uma clínica onde pudéssemos avaliar as alegações
dos pacientes sobre a maconha medicinal.
A maioria do que
sabíamos sobre a droga não tinha fundamento. Muita coisa era folclórica. Minha
ideia foi ouvir as histórias dos pacientes e depois fazer com que passassem por
uma avaliação clínica.
Quando você
se mudou para o Canadá em 1999, o que já se sabia sobre a maconha medicinal?
Já sabíamos que os
canabinóides funcionavam como analgésicos em modelos animais. Havia descrições
de casos de pessoas com esclerose múltipla que haviam se beneficiado.
Na Califórnia,
pessoas com HIV estavam usando a maconha para estimular o apetite, diminuir o
enjoo e a dor. Pacientes com câncer usavam às vezes para diminuir a náusea
causada pela quimioterapia.
Desde então, houve
pelo menos 15 testes de boa qualidade por todo o mundo. Já foi descrito que os
canabinóides ajudam com neuropatias associadas ao HIV, neuropatias traumáticas,
esclerose múltipla e dores por causa de diabetes. Também foram conduzidos
alguns estudos menores sobre fibromialgia e transtorno de estresse
pós-traumático.
Quando falamos de
medicina translacional, um remédio geralmente vai do "teste para a
clínica". Mas a cannabis seguiu uma trajetória única: os pacientes já
estavam usando por conta própria, e então fizeram essas pesquisas, geralmente
baseadas em alguns estudos de caso. E, em alguns casos, testes posteriores
levaram a remédios – como o Marinol, que veio da constatação de que os
pacientes de HIV estavam usando cannabis.
Conte-nos
sobre a sua pesquisa.
Uma investigação que
publicamos no Canadian Medical Association Journal em 2010 avaliou 23 pacientes
que usaram três níveis diferentes de preparações de cannabis e um placebo por
dois meses. Eles podiam dar uma tragada três vezes ao dia. Descobrimos que 9,4%
de nível de THC já ultrapassava o placebo em seus efeitos contra a dor.
Descobrimos também
que ajudou com a ansiedade e o sono. O interessante é que nossos pacientes
pareciam, na verdade, usar quantidades muito pequenas da droga para controlar
seus sintomas, muito menores do que as dos usuários recreacionais.
Esperamos avançar com
essa pesquisa lançando o que acreditamos ser o primeiro estudo longitudinal de
pacientes de maconha medicinal. Vamos acompanhar os efeitos de longo prazo em
nossos pacientes regulares que a usam para condições crônicas. Vamos pesquisar
a segurança ao longo dos anos.
Por que o uso
da cannabis é geralmente tão pouco estudado?
A resposta fundamental
é que o fato de a droga ser ilegal estigmatizou a maioria das pesquisas. No
Canadá, as pessoas muitas vezes têm medo por causa da percepção de que estão
trabalhando com substâncias ilegais, mesmo quando isso não é mais o caso.
Nos Estados Unidos é
diferente porque, no nível federal, a cannabis está listada como uma droga Tipo
I, como a heroína. Isso significa que a comunidade médica tem muitas restrições
para conseguir material de pesquisa.
Ao mesmo tempo,
existem mais de 20 estados em que a maconha medicinal, em diferentes níveis, é
legal. No entanto, as plantas que crescem no Colorado podem ser bem diferentes
daquelas que crescem em outros lugares. Além disso, as condições médicas para o
uso variam de estado para estado.
Essa falta de
padronização é outro fator que torna a pesquisa difícil, porque quando estamos
falando sobre cannabis em um estado e em outro, podemos não estar falando da
mesma coisa.
Você
disse que é muito procurado por médicos que querem conselhos práticos sobre a
droga. O que eles perguntam?
A pergunta mais
comum é: "Como posso distinguir pacientes que querem por razões médicas
daqueles que querem fazer uso recreacional?" Também sou procurado por
clínicos que esperam que eu atenda seus pacientes e explique o que puder a
eles.
Na verdade, gostaria
que esses médicos se informassem melhor; existe uma grande quantidade de
informação, apesar de precisarmos de mais. Acredito que ao não se informar, os
médicos não estão realmente servindo seus pacientes.
No Canadá, por
exemplo, percebemos que os oncologistas geralmente não falam a seus pacientes
sobre a maconha medicinal. São as enfermeiras que dizem: "Meu caro, porque
você não vai lá fora e dá uma tragada?"
A própria
Associação Médica do Canadá lembra aos membros que eles não são obrigados a
prescrever maconha porque há "evidência insuficiente sobre os riscos
clínicos e os benefícios". O que você acha disso?
Bom, concordo
com eles, pelo menos sobre isto: "Precisamos de mais pesquisas".
Acho que chegou a
hora de nós, como uma comunidade global, combinarmos o que queremos saber e
irmos atrás. Nossos pacientes precisam deixar de experimentar por conta própria
substâncias e derivados que não conhecemos e partir para uma situação em que
sabemos o que eles estão usando e como podemos ajudá-los. Isso não é algo que
vai sumir.
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