Desde a primeira
cirurgia, outras 20 foram realizadas em hospitais de São Paulo, Rio e Minas,
segundo Carneiro. Dos 21 pacientes operados, 9 sobreviveram, dos quais ao menos
4 tiveram alta.
Em seus quase 30 anos
de experiência em transplantes de fígado, o médico Luiz Carneiro D'Albuquerque
poucas vezes viu uma situação tão dramática como a dos pacientes com quadro
grave de febre amarela. "A gente colocava o doente na lista de espera por
um órgão no fim da tarde, recebíamos autorização para transplantar em duas
horas e, quando era no outro dia de manhã, enquanto esperávamos o fígado, o
paciente já estava agônico, quase morrendo. Era desesperador", diz.
Professor titular da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e chefe de
transplantes de órgãos abdominais do Hospital das Clínicas, o especialista
chefiou a equipe que fez, em 30 de dezembro, o primeiro transplante de fígado
em um paciente com febre amarela no mundo. Desde a primeira cirurgia, outras 20
foram realizadas em hospitais de São Paulo, Rio e Minas, segundo Carneiro. Dos
21 pacientes operados, 9 sobreviveram, dos quais ao menos 4 tiveram alta.
A taxa de sucesso do
transplante, de 43%, pode parecer baixa numa primeira análise, mas representa
um marco no tratamento da doença no mundo e, ao mesmo tempo, um desafio para os
cientistas brasileiros envolvidos no processo.
Nos casos agudos da
doença, em que há comprometimento neurológico - uma das situações em que o transplante
é indicado -, a mortalidade chega a 90%. Mas o transplante de fígado em casos
de febre amarela nunca havia sido realizado, por duas razões: primeiro, porque
geralmente o paciente morre antes da chegada do órgão; segundo, porque os
médicos não sabiam se, após a cirurgia, o vírus passaria a atacar o fígado
novo.
Com a observação dos
transplantados, os médicos descobriram que o vírus da febre amarela é tão
devastador que os pacientes com hepatite fulminante causada pela doença não
podem esperar pelo novo órgão o mesmo tempo que os doentes com insuficiência
hepática por outras causas. Isso porque, mesmo que o fígado seja trocado, se o
vírus já tiver atacado outros órgãos vitais, a chance de recuperação é pequena.
"A gente não
conhecia bem essa doença em São Paulo. O último surto urbano foi na década de
40. Percebemos que os critérios clássicos para indicação de transplante de
fígado não servem para febre amarela. Nos casos em que o paciente morreu após o
transplante, o que aconteceu foi que o comprometimento de outros órgãos já era
tão grave que a troca do fígado não bastou", diz D'Albuquerque, que
transplantou seis pacientes no HC, metade ainda viva.
Critérios.
Em fevereiro, o grupo
de especialistas brasileiros envolvidos nos transplantes definiu, em conjunto
com o Ministério da Saúde, critérios específicos para os casos de troca de
órgão em pacientes com febre amarela. Segundo os médicos, a principal diferença
entre os pacientes que sobreviveram e os que morreram foi o momento em que o
transplante foi realizado. "Os que tiveram êxito foram encaminhados para
transplante mais precocemente - e quando digo precoce são apenas um ou dois
dias de diferença, o que dá uma ideia do quanto a situação era dramática",
afirma Antônio Márcio de Faria Andrade, responsável técnico pelo transplante de
fígado do Hospital Felício Rocho, de Belo Horizonte, onde quatro pacientes
foram transplantados, dos quais dois sobreviveram.
Um dos critérios
adaptados para esses pacientes foi referente ao grau de comprometimento
neurológico causado pela falência do fígado, a chamada encefalopatia hepática.
"Em casos de hepatite fulminante por outras causas, nós indicamos o
transplante com comprometimento (máximo) grau 3 ou 4. No caso da febre amarela,
o paciente já pode ter indicação com comprometimento grau 1, tamanha a
agressividade da doença", afirma Andrade.
Os cientistas também já
começam a definir sinais que indicam pouca chance êxito no transplante.
"Sintomas como pancreatite aguda grave, hemorragias cerebral e digestiva e
choque refratário (queda severa de pressão) podem contra indicar o
transplante", relata Ilka Boin, professora titular da Unidade de
Transplantes Hepáticos do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), onde dois transplantes foram feitos, nenhum deles com
sobreviventes.
Além de considerar o
quadro do próprio doente, os médicos precisam definir com cautela quem será
indicado ao procedimento para que não seja feito o chamado transplante fútil,
no qual o órgão doado é desperdiçado com um paciente com poucas chances de
sobrevivência.
Com base nos
transplantes realizados nos últimos três meses, o Ministério da Saúde deve
publicar nos próximos dias uma norma técnica definindo se o procedimento
seguirá sendo feito no País e sob quais condições. Atualmente, ele é
considerado experimental.
Para D'Albuquerque, o
transplante possibilitou salvar pacientes que provavelmente morreriam. "No
HC, indicamos o transplante para 20 doentes, dos quais 6 foram transplantados.
Dos 14 que não passaram pelo procedimento, 13 morreram. Me parece que o
transplante é válido, mas deve ser feito com critérios muito precisos."
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