FONTE: Pablo Nogueira, Revista Pesquisa Fapesp (noticias.uol.com.br).
Imagine uma reforma
de casa tão radical que inclua a remoção da pintura e do reboco das paredes,
deixando desnudos os tijolos que formam a sua estrutura. Essa metáfora é útil
para entender os projetos em andamento no Laboratório de Engenharia Celular (LEC)
coordenado pela hematologista e hemoterapeuta Elenice Deffune na Universidade
Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. Em vez de tinta e cimento, o trabalho
dos pesquisadores envolve a remoção das células que recobrem estruturas ocas do
corpo, como a traqueia e os vasos sanguíneos. Esse procedimento, conhecido como
descelularização, é o primeiro passo de uma transformação mais ampla: a
produção de órgãos e tecidos de reposição formados por células com as
características genéticas do receptor.
Usando essa estratégia,
o cirurgião vascular Matheus Bertanha está desenvolvendo no LEC uma possível
alternativa terapêutica para os problemas circulatórios gerados pela
aterosclerose. Na aterosclerose, placas de gordura e cálcio se acumulam no
interior das paredes das artérias e obstruem, ainda que parcialmente, a
passagem do sangue. Quando esse bloqueio é grave a ponto de causar sintomas, o
tratamento envolve procedimentos cirúrgicos para restaurar a circulação. Nos
casos mais radicais, implanta-se um segmento de artéria ou de veia retirado de
outra parte do corpo do próprio indivíduo, criando um desvio – ou uma ponte –
que restabelece o fluxo sanguíneo normal. É o que geralmente fazem os
cirurgiões cardíacos ao implantar um segmento da veia safena, extraído da
perna, no coração de quem tem as artérias coronárias obstruídas. Algo
semelhante é feito pelos cirurgiões vasculares para tratar bloqueios em
artérias das pernas.
Nem sempre, no
entanto, é possível realizar esse procedimento. Segundo dados da literatura
médica, 30% dos pacientes que necessitam de enxerto para a confecção de pontes
coronarianas não possuem vasos com as características adequadas para essa
função. Estima-se ainda, conta Bertanha, que uma em cada 10 pessoas com
indicação para receber enxertos vasculares nos membros inferiores enfrente o
mesmo problema. "Alguns possuem veias com menos de 2,5 milímetros de
diâmetro, o que impede a sua utilização", explica. "Outras pessoas já
estão na segunda ponte e não têm mais vasos disponíveis", diz. Nesses
casos, uma saída é usar uma ponte artificial, feita de material sintético. Mas
elas podem ter uma vida útil curta porque sofrem obstrução mais facilmente.
Outra possibilidade é obter vasos de doadores vivos, o que nem sempre é viável
por causa da incompatibilidade imunológica, que pode levar à rejeição do
implante.
Bertanha trabalha
numa alternativa, ainda experimental, para tentar superar a falta de vasos do
próprio indivíduo e o risco de obstrução dos materiais sintéticos. Em testes
com coelhos, ele primeiro extrai vasos naturais – mais especificamente veias –
de um animal doador. Depois, o segmento a ser transplantado para outro animal
passa por um banho químico com detergentes que eliminam as células das paredes
do vaso. O objetivo desse processo de descelularização é evitar que o corpo do
receptor desencadeie uma agressão contra o órgão implantado. O que sobra desse
processo é uma estrutura tubular – um arcabouço – composta por fibras de
colágeno, a proteína formadora dos tecidos de sustentação do corpo.
Em seguida, o
pesquisador semeia no interior do vaso um tipo especial de célula retirada do
corpo do receptor: as células-tronco mesenquimais. Extraídas do tecido adiposo
do animal que vai receber o transplante, essas células são capazes de se
converter em células típicas dos vasos sanguíneos. Elas são cultivadas em
laboratório até atingirem a quantidade esperada – cerca de 100 mil células para
o experimento em animais pequenos – e depois coladas no interior do tubo de
colágeno com o auxílio de um gel. "A presença de células do próprio
receptor no segmento a ser implantado reduz ao mínimo a necessidade de usar
imunossupressores para evitar a rejeição", explica Elenice Deffune, que
orientou o trabalho de Bertanha durante o mestrado.
Em um experimento
concluído recentemente, Bertanha comparou o desempenho de quatro tipos de
implante. Os animais do primeiro grupo receberam um segmento de veia cava
retirada diretamente de outro indivíduo, sem passar pela descelularização,
enquanto nos do segundo foi implantada apenas a veia descelularizada. No
terceiro grupo foi usado um segmento de veia que passou pelo processo de
descelularização seguido do repovoamento com células-tronco de outro indivíduo.
E, por fim, o quarto grupo recebeu um segmento de veia descelularizada contendo
células-tronco mesenquimais do próprio receptor.
Rejeição e
regeneração.
Como esperado, no
primeiro caso houve uma reação inflamatória exuberante e uma forte rejeição ao
vaso transplantado, enquanto no segundo ocorreu apenas uma resposta
inflamatória branda. O uso de um tubo de colágeno povoado com células-tronco de
outro indivíduo não despertou uma rejeição imediata. As células se
diferenciaram formando o endotélio, a camada que reveste o interior dos vasos
sanguíneos, e pavimentaram boa parte do tubo. Um mês mais tarde, porém, surgiu
uma inflamação expressiva.
Apenas os animais do
quarto grupo não apresentaram rejeição, nem inflamação importante, mesmo um mês
após a cirurgia e sem o uso de medicamentos imunossupressores. O que mais
surpreendeu o pesquisador foi o comportamento das células-tronco implantadas.
"Além de terem pavimentado mais de 50% do vaso, elas atraíram outras
células-tronco existentes no organismo do receptor", conta Bertanha. O
resultado, inesperado, foi a formação de novos vasos sanguíneos (angiogênese).
"Em princípio, essa surpresa é boa porque a angiogênese pode ajudar o novo
vaso a se integrar ao tecido adjacente", diz o pesquisador. "Mas
teremos de investigar se esse processo não é patogênico." Bertanha planeja
realizar mais testes em animais, ao mesmo tempo que começa a trabalhar com
células-tronco humanas, já pensando em experimentos futuros.
Em paralelo ao
trabalho de Bertanha, a biomédica Thaiane Cristine Evaristo, aluna de doutorado
da cirurgiã Daniele Cataneo, usa os procedimentos de descelularização e
recelularização para produzir no LEC traqueias a serem usadas em transplantes.
Ela desenvolve um protocolo de descelularização distinto dos adotados por
equipes no exterior – e potencialmente mais barato.
Em outros países, os
pesquisadores costumam usar enzimas de origem animal ou obtidas por engenharia
genética para eliminar da traqueia as células do doador. Apesar de eficaz, essa
estratégia é cara. Pode-se gastar até € 80 mil para descelularizar uma única
traqueia. Esse custo, sem contar o da cirurgia e o da internação, torna quase
proibitivo o transplante de traqueia em seres humanos.
Buscando uma
alternativa, Thaiane e Elenice decidiram submeter as traqueias extraídas de
doadores a uma sequência de tratamentos químicos e físicos que produzissem um
resultado semelhante ao obtido com as enzimas. Primeiro, removeram
cirurgicamente a traqueia e a banharam em um potente detergente, que ajuda a
desfazer a membrana das células. Em seguida, usaram uma prensa para comprimi-la
suavemente, antes de fazê-la passar por alguns ciclos de congelamento e
descongelamento e imersão em um líquido agitado por vibrações ultrassônicas.
Por último, a traqueia passou um período exposta à luz emitida por diodos
(LEDs).
Peças de retífica.
As traqueias livres de células obtidas com essa técnica foram testadas em coelhos, com resultados promissores. Não houve rejeição ao transplante e os roedores sobreviveram por um período que, para humanos, equivale a 10 anos. Com base nesses resultados, Elenice propôs ao físico Vanderlei Bagnato, da Universidade de São Paulo em São Carlos, desenvolver um equipamento integrando todas as etapas da técnica. Recentemente eles depositaram um pedido de patente do aparelho, cujo protótipo se encontra em desenvolvimento.
As traqueias livres de células obtidas com essa técnica foram testadas em coelhos, com resultados promissores. Não houve rejeição ao transplante e os roedores sobreviveram por um período que, para humanos, equivale a 10 anos. Com base nesses resultados, Elenice propôs ao físico Vanderlei Bagnato, da Universidade de São Paulo em São Carlos, desenvolver um equipamento integrando todas as etapas da técnica. Recentemente eles depositaram um pedido de patente do aparelho, cujo protótipo se encontra em desenvolvimento.
Ao mesmo tempo que
trabalha no equipamento, o grupo de Botucatu prepara a próxima fase de testes,
com suínos, etapa necessária antes do início dos estudos com seres humanos.
Além de analisar a eficácia das técnicas de descelularização e recelularização
de traqueias, o grupo pretende nos próximos anos testar traqueias artificiais
feitas a partir de uma nova tecnologia, a ser desenvolvida em parceria com o
Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Instituto do Coração (InCor) da
Universidade de São Paulo, ambos na capital paulista, e o Centro de Tecnologia
da Informação Renato Archer, em Campinas.
A colaboração prevê
que o LEC forneça ao IPT proteínas humanas para serem usadas na produção de um
tecido nanoestruturado. No Centro Renato Archer, placas desse nanotecido
deverão alimentar uma impressora 3D, que irá esculpir novas traqueias. Uma vez
prontas, elas deverão ser remetidas ao LEC para a etapa de recelularização.
"Queremos avaliar se essa opção se mostra tão boa quanto o uso das traqueias
naturais", diz Elenice. "Talvez o futuro dos transplantes esteja
nesses novos materiais."
No mundo todo existe
uma demanda por traqueias para transplante. Elas são necessárias para
substituir a traqueia de crianças que nascem com estreitamento nesse tubo que
leva o ar do nariz aos pulmões – enfermidade conhecida como atresia congênita
da traqueia, que atinge três crianças em cada 100 mil nascidas vivas – e também
as de adultos que passam por longos períodos de internação respirando por meio
de aparelhos. "No Hospital das Clínicas de São Paulo há uma fila de cerca
de 300 pessoas à espera de um transplante de traqueia", conta Elenice.
"Em muitos casos, são adultos jovens que sofreram acidentes de
trânsito."
A literatura médica
internacional traz relatos de aproximadamente 30 pessoas que receberam, de modo
experimental, o implante de traqueia obtida por meio de engenharia celular. Mas
ainda não se conhecem os resultados, que estão sob análise. "A engenharia
celular pode fornecer uma esperança concreta para pacientes com lesões crônicas
em órgãos de difícil abordagem terapêutica na atualidade", diz Elenice. Em
sua opinião, há motivos para investir na criação de traqueias e vasos
sanguíneos artificiais, uma vez que é difícil obter essas estruturas naturais,
que dependem de doadores de órgãos. "Às vezes, comparo nosso método a uma
retífica de peças, que recupera as usadas e as deixa prontas para o
transplante", exemplifica Elenice. "Criar traqueias artificiais
abriria a possibilidade de trabalharmos com peças novas em folha para o
processo de recelularização."
Referência em
engenharia celular no Brasil, a bióloga Nance Nardi, da Universidade Luterana
do Brasil, no Rio Grande do Sul, explica que a pesquisa nessa área começou com
vasos e traqueias por causa da relativa simplicidade dessas estruturas.
"Já há estudos com órgãos mais complexos, como o fígado, mas estão em
estágios mais preliminares", diz. Nance vê no crescente domínio do
processo de descelularização uma das chaves para o progresso apresentado pelo
LEC. "Remover as células de um arcabouço sem comprometer a sua integridade
ainda é algo bem difícil", avalia. "O trabalho deles tem conseguido
boa repercussão, mas ainda deve levar algum tempo até que esses procedimentos
se tornem cotidianos nas salas de cirurgia."
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