FONTE:
Tatiana Pronin, Do UOL, em São Paulo (noticias.uol.com.br).
O que o diabetes tipo 1 e a artrite reumatoide têm em comum? Aparentemente, nada. Mas ambas têm uma origem em comum: um ataque do sistema imunológico contra uma estrutura do próprio organismo, ou seja, uma resposta autoimune.
Todo mundo aprende na
escola que o sistema imunológico existe para combater ameaças externas, como
vírus e bactérias. Ao "visualizar" esses agentes, produz anticorpos
com o objetivo de atacá-los.
Em alguns casos, no
entanto, o general desse exército confunde células do próprio organismo com
invasores. No caso do diabetes tipo 1, combate as células beta, responsáveis
pela produção de insulina. Na artrite reumatoide, o ataque é contra vários
tecidos e estruturas das articulações. Já no caso das doenças autoimunes
difusas, como o lúpus, o ataque é mais disseminado e as manifestações podem
incluir vários órgãos, tecidos e vasos sanguíneos.
Os mecanismos
imunológicos que ocasionam a lesão dos órgãos nessas doenças é algo que médicos
e cientistas até compreendem bem. Já o que leva o sistema imunológico a se
reverter, destruindo algo que teoricamente deveria ser protegido, ainda é um
mistério, ou "a pergunta que vale um bilhão de dólares", como diz
o médico Freddy Eliaschewitz, consultor da ADJ Diabetes Brasil.
De acordo com o
Instituto Nacional de Saúde (NIH), dos EUA, mais de uma centena de doenças
crônicas têm origem em uma resposta autoimune. Mas, apesar do processo em
comum, cada doença autoimune tem suas próprias características, ritmo evolutivo
e sintomas específicos. É por isso que não existe um médico especialista em "autoimunidade".
"Hoje sabe-se
que existe até infertilidade causada por doença autoimune, ou seja, é algo que
permeia toda a medicina", explica o reumatologista Luís Eduardo Coelho
Andrade, professor da Universidade Federal de São Paulo. Algumas das doenças autoimunes
mais conhecidas, como lúpus e artrite reumatoide, são tratadas por
profissionais como ele.
Mas
endocrinologistas, dermatologistas e diversos outros especialistas podem ser
requisitados, bem como outros profissionais de saúde, como nutricionistas,
psicólogos e fisioterapeutas.
Doenças
autoimunes não são raras.
Felizmente, ser
atacado pelo próprio sistema de defesa do organismo não é tão comum quanto
pegar uma gripe ou resfriado. Estima-se que as doenças autoimunes afetem de 5 a
8% da população geral, mas considerando cada doença autoimune especificamente,
a frequência é bem menor, variando de 0,01 a 1%.
Mas há estimativas
menos otimistas. Os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, por exemplo, afirmam
que 23,5 milhões de norte-americanos sofrem dessas enfermidades, o que não é
pouco para uma população de cerca de 320 milhões. Já a American Autoimmune
Related Diseases Association (AARDA), uma entidade sem fins lucrativos, diz que
50 milhões é um número mais realista, pois os Institutos só consideram 24
doenças para as quais há pesquisas epidemiológicas de qualidade.
Só para se ter uma
ideia do que essa estimativa representa: as doenças cardíacas afetam cerca de
22 milhões de norte-americanos e o câncer, 9 milhões.
É preciso
haver uma tendência genética para desenvolver essas doenças.
Segundo os
especialistas, existem variantes genéticas conhecidas que predispõem parte da
população às doenças autoimunes. Ou seja, algumas pessoas nunca vão desenvolver
o problema, enquanto algumas famílias podem ter diversos membros com diferentes
tipos de doenças autoimunes.
Mas ter a tendência
não significa ter a enfermidade - é preciso que haja um fator ambiental que
deflagre a doença. Os cientistas conhecem alguns deles, mas não todos. No caso
da doença celíaca, uma intolerância permanente ao glúten (componente do trigo e
de outros cereais), o gatilho é bem conhecido: a alimentação. "Mas isso
não acontece necessariamente na primeira vez que a pessoa ingere o
glúten", observa Andrade. No caso da artrite reumatoide, ele conta que o
cigarro é um fator importante.
Viroses, infecções em
geral e até mesmo episódios de estresse psíquico também podem funcionar como
deflagradores de doença autoimune em indivíduos geneticamente predispostos, bem
como a exposição a sílica, solventes e outros produtos químicos, de acordo com
pesquisas.
Várias
teorias tentam explicar as doenças autoimunes.
Embora existam
diversas teorias para explicar a autoimunidade, é importante frisar que nenhuma
delas foi confirmada até hoje, segundo os especialistas. A "teoria da
higiene" é uma delas - como as doenças são mais comuns em países mais
desenvolvidos e em áreas urbanas, cogita-se que o consumo de alimentos
pasteurizados e o excesso de higiene estariam impedindo o sistema imunológico
dessas populações de se "educar" corretamente.
Outra teoria é a do
mimetismo molecular - alguns micro-organismos teriam aumentado suas chances de
sobrevivência com a capacidade de se camuflar dentro do organismo. Essa
semelhança faria o sistema imunológico se confundir e passar a combater uma
estrutura própria depois de uma virose, por exemplo. Há, ainda, a ideia de que
certas infecções levariam o organismo a expor componentes que antes ficavam
escondidos e, portanto, não são reconhecidos pelo sistema imunológico.
As mulheres
são as principais vítimas.
Aproximadamente 75%
das pessoas que sofrem de doenças autoimunes são mulheres. No caso da
tireoidite de Hashimoto, em que a glândula tireoide é atacada, a proporção
chega a ser de dez para um. Já outras doenças, como a esclerose múltipla, a
prevalência feminina é um pouco menos expressiva, de aproximadamente duas
mulheres para cada homem afetado.
A justificativa mais
aceitável para essa desigualdade é o fator hormonal: "O estrógeno é um
estimulante da imunidade", explica o reumatologista da Unifesp. Tanto que
boa parte das doenças autoimunes acomete mulheres em idade fértil.
Existem
formas mais leves ou mais graves de doença autoimune.
Embora toda doença
autoimune seja crônica, algumas pessoas apresentam sintomas mais leves, enquanto
outras têm manifestações tão intensas que, em certos casos, podem levar à
morte. Um dos exemplos é o lúpus: enquanto alguns pacientes apresentam
eventuais dores nas articulações e a famosa mancha no rosto, em forma de
borboleta, outros desenvolvem problemas sérios nos rins ou nos vasos sanguíneos
(vasculite).
O tratamento
para doenças autoimunes evoluiu bastante nos últimos anos.
O tratamento das
doenças autoimunes varia de acordo com a enfermidade, mas o uso de corticoides
é algo frequente. Esses anti-inflamatórios são eficazes e ajudam a controlar a
reação do organismo, mas seu uso crônico traz efeitos indesejados, como aumento
da vulnerabilidade a infecções e ganho de peso.
"Hoje há novos
remédios que permitem um uso menor de corticoide", informa Andrade. E
alguns medicamentos biológicos, derivados da biotecnologia, têm sido bastante
eficazes no caso de certas doenças, como artrite reumatoide, psoríase e doença
de Crohn, embora o custo ainda seja muito alto.
O reumatologista da
Unifesp conta que ele próprio, em sua experiência pessoal, presenciou um avanço
notável nos últimos anos. "Antigamente, os ambulatórios para artrite
reumatoide eram lotados de cadeiras de rodas, e hoje você encontra uma ou
outra", relata. "E se antes dar o diagnóstico de lúpus a uma garota
de 20 anos era uma sentença, hoje você pode dizer à paciente que ela terá uma
vida normal, só terá que ser mais disciplinada com exames, consultas e
medicamentos."
Existem pesquisas
experimentais com terapias que, de alguma forma, ajudariam a "resetar"
o sistema imunológico. É o caso, por exemplo, do uso de células-tronco na
tentativa de combater o diabetes tipo 1. Mas ainda há muitos obstáculos a serem
enfrentados. Freddy Eliaschewitz comenta que muitos pacientes entram em
remissão, mas depois a doença volta a se manifestar. E um procedimento desse
tipo sempre envolve riscos, pois são necessárias altas doses de
imunossupressores.
Ter um FAN
positivo não significa ter doença autoimune.
Quando se fala em
doença autoimune, um dos exames mais lembrados é o FAN (Fator Antinúcleo). Ele
é realizado para detectar autoanticorpos contra estruturas nucleares das
células e costuma ser solicitado quando há suspeita de reações autoimunes, por
exemplo, a presença de dores articulares sem lesões ou desgaste aparentes. Há
vários padrões analisados, e, cada um deles, quando o resultado é positivo,
pode ser sugestivo de uma ou outra doença autoimune.
Luís Eduardo Andrade
explica que o FAN foi muito importante quando se iniciaram os diagnósticos de
autoimunidade, a partir da metade do século passado. Mas, depois, os cientistas
descobriram que muitos indivíduos saudáveis, ou com certas infecções, também
podem apresentar o exame positivo. Portanto, o FAN pode ajudar a estabelecer um
diagnóstico que tenha surgido a partir de sintomas, mas, sozinho, não significa
nada.
Em geral, diante da
suspeita de doença autoimune, o médico solicita também outros exames de sangue
para identificar anticorpos específicos.
Existe
relação entre estresse e doença autoimune
Muitos pacientes contam
que tiveram uma doença autoimune deflagrada depois de sofrer algum evento
traumático. De acordo com o reumatologista da Unifesp, essa relação com o
emocional é observada em alguns indivíduos, mas é difícil medir esse tipo
de impacto de forma consistente.
Mas o médico avisa
que o estresse pode influenciar, sim, o estado da doença. Por isso é importante
que os pacientes diagnosticados busquem ter uma vida equilibrada, com atividade
física, nutrição adequada e sono suficiente. "Há conexões importantes entre
o sistema nervoso e o sistema imunológico", justifica.
Veja
informações sobre algumas das doenças autoimunes mais comuns:
Artrite
reumatoide - é caracterizada por
dores nas articulações de ambos os lados do corpo, pois o sistema imunológico
ataca a camada de tecido que reveste essas estruturas. Afeta em torno de um a
cada 100 indivíduos. Veja mais
Diabetes tipo
1 - também chamada de Diabetes
mellitus, a doença ataca as células produtoras de insulina. Os pacientes
precisam de injeções diárias desse hormônio para regularizar o metabolismo do
açúcar. Pode surgir em qualquer idade, mas principalmente antes dos 35 anos. O
tipo 1 representa apenas de 5 a 10% dos casos de diabetes. Veja mais
Doença de
Crohn - é uma das doenças
inflamatórias intestinais causadas por autoimunidade. Provoca diarreia crônica,
dores abdominais, perda de peso e também pode causar dores articulares. Veja mais
Doença
celíaca - caracterizada pela
intolerância permanente ao glúten, provoca diarreia, vômito, perda de peso,
problemas de desnutrição e fertilidade. Afeta uma em aproximadamente 300
pessoas. Veja
mais
Esclerodermia - afeta o tecido conjuntivo, podendo provocar apenas
alterações na pele, ou também nos músculos, nos vasos sanguíneos e em órgãos
como estômago, esôfago e pulmões. Veja mais
Esclerose
múltipla - o sistema imunológico
ataca o cérebro e o sistema nervoso central. Os pacientes têm sintomas como
falhas na coordenação motora, fraqueza nas pernas e problemas de memória. Veja mais
Lúpus - afeta principalmente a pele, as articulações, os rins e
o cérebro, mas também pode acometer outros órgãos. A prevalência é de
aproximadamente uma em 1.000 pessoas. Veja mais
Psoríase - doença caracterizada por lesões avermelhadas e
descamativas na pele, principalmente no couro cabeludo, cotovelos e joelhos.
Acomete cerca de 2% da população mundial. Veja mais
Tireoidite de
Hashimoto - a doença ataca a
glândula tireoide, responsável pelo metabolismo. Os pacientes apresentam
sintomas de hipotireoidismo, como cansaço, ganho de peso, queda de cabelo e
dificuldade de raciocínio, entre outros. Veja mais
Vitiligo - afeta a melanina, o pigmento da pele, podendo surgir
em qualquer parte do corpo. A doença costuma afetar muito a autoestima e pode
funcionar como gatilho para depressão. Veja mais
Nenhum comentário:
Postar um comentário