Estudo
publicado em revista médica indica mais do que isso gera impacto na cognição
dos mais novos.
O “dia ideal” para o
desenvolvimento físico e cerebral de uma criança entre 5 e 13 anos deve ter de
9 a 11 horas de sono ininterrupto, ao menos uma hora de exercícios moderados e
no máximo duas horas em frente a uma tela com fins recreativos. Mas poucas
cumprem integralmente estas recomendações nos EUA — um fenômeno que
especialistas acreditam se repetir no Brasil —, com o tempo de tela excessivo
apresentando o maior custo em termos de desempenho cognitivo, indica estudo
publicado esta semana no periódico médico “The Lancet Child & Adolescent
Health”.
Tendo como base estas
diretrizes de “dia ideal” para crianças e jovens apontadas em 2016 pela
Sociedade Canadense para Fisiologia do Exercício (CSEP, na sigla em inglês), os
cientistas liderados por Jeremy Walsh, do Instituto de Pesquisas do Hospital
Infantil do Leste de Ontário (CHEO, também na sigla em inglês), aproveitaram a
divulgação dos primeiros dados de outro amplo estudo envolvendo crianças nos
EUA para avaliar seu impacto na cognição delas.
De acordo com o
levantamento americano, intitulado Desenvolvimento Cognitivo do Cérebro
Adolescente (ABCD, ainda em sigla em inglês), das 4.520 crianças com média de
idade de 10 anos e todos dados disponíveis avaliados, apenas 5%, ou uma em cada
20, cumprem integralmente as diretrizes do CSEP, enquanto 29%, ou quase uma em
cada três, não seguem nenhuma das recomendações no seu dia a dia. Já 41% só
cumpriam uma das diretrizes, e 25% duas delas.
Comparando os
desempenhos cognitivos globais destas crianças, os cientistas verificaram que
quanto maior a adesão às recomendações canadenses de comportamento diário,
melhor o resultado nos testes neste sentido realizados no âmbito do estudo
ABCD, com as maiores diferenças a favor das que aderiam à limitação do “tempo
de tela” para fins recreativos e das que cumpriam esta e a relativa ao sono.
— Descobrimos que mais
de duas horas de tempo recreativo de tela das crianças estão associadas a um
pior desenvolvimento cognitivo — resume Walsh. — Agora são necessárias mais
pesquisas sobre a ligação entre tempo de tela e cognição, inclusive o estudo
dos efeitos dos diferentes tipos de tempo de tela, seja educacional ou de
entretenimento, ou se requer foco ou envolve ações multitarefas. Mas baseados
em nossos achados, pediatras, pais, educadores e autoridades devem promover a
limitação do tempo de tela e priorizar rotinas saudáveis de sono na infância e
adolescência.
Exercícios regulares
permanecem como comportamento mais importante.
Os cientistas destacam
ainda que, surpreendentemente, o nível de atividade física, que se sabe ter
influência positiva no desenvolvimento cerebral, não pareceu ter grande impacto
nesta medida de cognição global. Segundo eles, isso se deve talvez ao fato de a
medida usada no estudo não ser sensível o bastante para tanto, ressaltando
também que os exercícios regulares permanecem como o comportamento mais
importante em termos de melhor saúde física, sem qualquer indicação de impacto
negativo na cognição.
Mesmo destaque dado por
Clay Brites, neuropediatra e fundador do Instituto NeuroSaber. Segundo ele, os
resultados do estudo são um novo alerta para pais e comunidade científica de
que mais pesquisas são necessárias para jogar luz sobre as crianças jovens
podem e devem ter tanto contato e tempo dedicado a esses tipos de tecnologias.
— Estamos apenas
começando a entender os efeitos do consumo excessivo de mídias digitais no
cérebro em desenvolvimento — diz. — De três a quatro anos para cá, vemos cada
vez mais estudos mostrando que o tempo de tela pode levar ao desenvolvimento de
sintomas de transtornos como déficit de atenção e hiperatividade. Ainda não
temos certeza, mas já há evidências disso.
Segundo Brites, embora não
haja estudos ou estatísticas sobre o tempo de tela de crianças e jovens no
Brasil, é provável que a situação aqui seja similar à observada nos EUA, com
poucos cumprindo as diretrizes canadenses, que também não existem no país.
Aqui, as únicas recomendações neste sentido são da Sociedade Brasileira de
Pediatria, que adverte que crianças com até 2 anos não devem ter qualquer tempo
dedicado a este tipo de atividades, enquanto as de 2 a 5 devem passar no máximo
40 minutos diários em frente a estes aparelhos com supervisão dos pais. Já para
as acima de 5 anos não existem orientações quanto a tempo máximo, apenas que o
uso de mídias digitais deve ter horários restritos, com “começo, meio e fim”.
— As tecnologias
digitais têm seus momentos, contexto e espaço para consumo, mas nada em excesso
— defende. — Assim, é papel dos pais ensinar seus filhos a diversificarem suas
atividades, especialmente nos primeiros anos de vida, quando o cérebro está em
desenvolvimento. As crianças devem ter um dia a dia mais analógico possível, e
quando falo analógico quero dizer em termos de experiências presenciais, reais,
concretas, de montar e construir processos, antes de terem acesso ao mundo
digital. Caso contrário, como no digital tudo é mais fácil, previsível e
rápido, corre-se o risco de elas virarem adultos que não vão conseguir lidar
com as frustrações da vida fora do digital.
Já a psicóloga Andréa
Jotta, pesquisadora do Laboratório do Estudos da Psicologia em Tecnologia,
Informação e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), acredita que o verdadeiro impacto do consumo excessivo de mídias
digitais no desenvolvimento das crianças de hoje só será conhecido daqui a dez
ou mais anos, quando elas crescerem e se tornarem jovens adultos.
- A questão é muito
maior que só o tempo de tela – diz. - O desenvolvimento integral do ser humano
consiste em aprender o máximo de coisas possível, e a infância é a fase da vida
em que a janela está aberta para isso em todos os sentidos. Assim, se estamos
expondo a criança a uma coisa só, estamos retirando dela a possibilidade de
outras experiências. E sabemos que nada que é excessivo, principalmente na
infância, é saudável.
Andréa, porém, destaca
que a solução não deve ser demonizar a tecnologia, mas fazer bom uso dela.
- O problema não é a
tecnologia em si, mas que ela se torne uma fuga quando se tem que enfrentar
conflitos, atrapalhando a construção de um repertório emocional para resolução
de situações do tipo – avalia. - A criança tem que ser educada fora da rede mas
também dentro dela, que faz parte do mundo no qual ela vai viver, para que ela
possa fazer bom uso da tecnologia. As redes são saudáveis como treinamento, mas
ruins se a criança ficar parada neste momento, sem construir o repertório para
enfrentar os desafios da vida face a face.