sábado, 22 de agosto de 2009

REFORMA MORALISTA DOS CRIMES SEXUAIS...


FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.

Pensando sobre a última reforma dos crimes sexuais, lembrei-me de outro dia quando voltava de uma viajem aos Estados Unidos, em meio ao alvoroço da gripe suína. Fiquei surpreso com o número de vezes que o “aeromoço” gritava, pelo microfone, determinando aos passageiros que preenchessem uma declaração sobre seu estado de saúde. Nenhum sintoma, nem mesmo uma tossezinha, poderia ser escondida. Agentes da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) estariam à nossa espera.
Realmente, sou um pouco alérgico e costumo espirrar algumas vezes em aviões. Naquela oportunidade, porém, contive-me ao máximo. Fiquei com medo de que o tal sujeito me “entregasse” às autoridades, as quais, por sinal, estavam mascaradas na porta do avião, para averiguar a suposta “periculosidade” dos passageiros.
Naquele momento me recordei da solidez do teorema de Thomas, segundo o qual “se algumas situações são definidas como reais, elas são reais nas suas consequências”.
É impressionante como as pessoas são suscetíveis aos meios de comunicação. Basta algo ser divulgado no jornal e, no dia seguinte, os fabricantes de máscaras e anti-sépticos ficam mais ricos. A pena é que ninguém quer saber de boas notícias. Compra-se somente desgraças. Não parece ser à toa, aliás, que as tragédias fazem tanto sucesso, desde a Grécia antiga, ocupando, na atualidade, tanto espaço em jornais.
A psicanálise explica, de forma bastante interessante, este fenômeno. Segundo esta ciência, trata-se de um mecanismo sádico da sociedade, de purgação de culpa, pelos desejos proibidos de seus integrantes. Projetamos nos culpados em geral —desde os vírus até os assassinos—, nossos desejos mais inconfessáveis, que incluem desde a prática de sexo com nossos pais, até o homicídio de nossos próprios filhos. O combate aos culpados eleitos —os bodes expiatórios—, e sua punição, por sua vez, correspondem à expiação dos nossos próprios sentimentos ocultos de culpa, por estes desejos imorais.
Não é de surpreender que o assunto “crimes sexuais” eleve tanto as paixões, quanto as penas de prisão e os lucros dos jornais, em sua massiva divulgação. Aliás, é sintomático que a última reforma dos crimes sexuais —levada a efeito pela Lei 12.015/2009— tenha surgido, justamente, no bojo de uma CPI (mais uma!) destinada a investigar a exploração sexual de crianças.
A coisa funcionou mais ou menos assim: com o compromisso de resolver os abusos sexuais infantis, alguns parlamentares saíram pelo país, à caça dos fatos mais desgraçados possíveis, cujas vítimas fossem as mais inocentes criancinhas. Enquanto isso, continuamos compramos as notícias mais bárbaras sobre o assunto. Então, nossos representantes se sentaram para debater como lidar com todos os conflitos sexuais problemáticos de nossa sociedade. E nós, naturalmente, ainda lamentamos a inexistência da pena de morte!
O moralismo explícito da nova lei é perceptível desde a nova denominação do capítulo do Código Penal em que foram inseridas as modificações. Basicamente, desde 1940, nada mudou. Antes eram “Os Crimes Contra os Costumes”. Agora, são “Os Crimes Contra a Dignidade Sexual”.
Pode parecer um pouco sutil, porém “dignidade sexual”, nada tem a ver com “liberdade sexual”.
A dignidade se trata de qualidade relativa à “decência”, conceito impreciso e carregado de um viés moral inaceitável, não delimitando bem jurídico algum, como exige a técnica penal contemporânea.
Com relação aos delitos em espécie, as modificações foram ainda mais lamentáveis, salvo duas exceções. A primeira foi a eliminação do delito de corrupção de menores, o qual visava meramente à doutrinação moral de jovens entre 14 e 18 anos, visando procrastinar o início de sua vida sexual. Mesmo assim, a nova lei manteve todos os delitos relacionados à prostituição consensual, por adultos, bem como os relativos ao pudor público, como a compra e venda de material obsceno, por exemplo, revistas pornográficas, vibradores e outros.
O outro ponto positivo da lei foi a eliminação do tipo de atentado violento ao pudor (artigo 214) e sua absorção pelo tipo do estupro (artigo 213). Assim, agora, além de homens e mulheres poderem ser estupradores e estuprados, evita-se as penas desproporcionais que nossa jurisprudência vinha aplicando ao concurso entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Pois, no cenário anterior, o estuprador que, além da conjunção carnal, submetesse também a vítima ao sexo anal, seria condenado em dobro, sofrendo as mesmas penas do homicídio qualificado, com um mínimo de 12 anos de reclusão.
Mas foi só. Pois a reforma incluiu no tipo do estupro a criminalização de qualquer “outro ato libidinoso”. Assim, não importa se o agressor se restringir a um beijo forçado ou a toques em regiões púbicas da vítima, ou se seguir até o sexo anal ou oral. Será punido como estuprador, com um mínimo de seis anos de reclusão.
Isto sem falar da supressão do estupro presumido, contra os menores de 14 anos, que permitia certa flexibilidade aos juízes, nos casos em que a vítima, embora menor, não fosse prejudicada pelo ato sexual não violento. Agora, qualquer ato sexual praticado com menores de 14 anos é estupro e não existe qualquer alternativa, senão a prisionalização.
Enfim, sem ingressar minuciosamente por todos os meandros da nova legislação, é intrigante notar que uma lei destinada à solucionar os mais graves conflitos sexuais de nossa sociedade ainda seja elaborada a partir de um discurso totalmente irracional de pânico —o qual, em verdade, permeia todo o debate legislativo criminal brasileiro.
Nenhuma solução alternativa foi sequer vislumbrada pelos parlamentares, os quais se restringiram ao tradicional binômio prisão ou liberdade, sem imaginar que a realidade é muito mais complexa, abrigando os mais diversos conflitos de natureza sexual, inclusive, entre pessoas que se amam, muitas delas menores 14 anos.
Fico imaginando que a lei foi feita para maltratar um punhado de responsáveis por atrocidades amplamente noticiadas, mas, na realidade, será empregada para a resolução de milhares de conflitos cotidianos, levando às mais terríveis masmorras brasileiras, muitos jovens das camadas mais desfavorecidas da população, nem que seja por um mero beijo roubado.

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Filipe Fialdini é advogado criminalista e professor de direito penal.

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