sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

SOBRE O “ENTULHO” LEGISLATIVO...

FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.

O jornal Brasil Econômico da quarta-feira (13 de janeiro de 2010) veiculou matéria (pp. 4 a 7) com o seguinte destaque na capa: “Entulho de um milhão de leis dificulta a vida dos brasileiros”.
Se perguntarmos às pessoas qual a principal missão do Legislativo, considerarmos a provável resposta e, em seguida, o tal “entulho de um milhão de leis”, constataremos um aparente paradoxo, pois essa atividade (a de legislar) constitui o ofício do representante do povo. Como o cumprimento de sua obrigação poderia dificultar a vida dos brasileiros? No Estado de Direito, não devemos presumir a necessidade de uma lei que está em vigência? Destinada à disciplina do tema que trata, não seria pior a ausência do regramento, que traria a insegurança? Leis esparsas e até mesmo contraditórias não gerariam insegurança jurídica?
A lei é tão importante para o brasileiro e para o legislador (que, afinal, nos representa), que temos o Dia da Legalidade. Foi, obviamente, instituído por uma lei (a 12.080/09). Claro que versa sobre um princípio (que já estava inscrito na Constituição e em diversas leis e, assim, não necessitava de mais uma). Claro que esse princípio se submete a outros. Contudo, uma lei o homenageou e, lamentavelmente, não faltará quem venha a imaginar que essa legalidade diz respeito exclusivamente ao ato de editar leis.
Em 2010, teremos a infeliz oportunidade de verificar no horário eleitoral gratuito, como sempre ocorreu, aqueles candidatos que pretendem permanecer nas casas legislativas mencionando algumas de suas iniciativas que se tornaram leis. Falam delas com muita convicção. Mencionando os projetos que “deram certo” (porque, entre nós, há leis que “não pegam”), a eles se referem como se fossem seus verdadeiros e únicos autores.
Mesmo que presentes às votações realizadas nos plenários das casas legislativas que integram (muitas vezes tão atentos e ativos como o morto na missa de corpo presente), jamais afirmarão que também votaram num daqueles “entulhos” que não servem para nada ou, o que é pior, atrapalham nossas vidas.
Provavelmente, os integrantes da comissão que analisa o “entulho” mencionado na matéria jornalística do Brasil Econômico, que detém a missão de consolidar o que é inútil, também participaram da votação da inútil Lei 12.080/90! Quer apostar?
Não há necessidade de muito esforço para encontrar exemplos de leis que demonstram que legislam sem pensar. Basta que você considere que no segundo semestre de 2009, enquanto um projeto de lei tramitava no Congresso Nacional, para tratar da consolidação da farta (porém absolutamente indispensável) legislação sobre o processo coletivo, o legislador, para ficar “bem na fita“ com o Palácio do Planalto, correu para disciplinar o “novo” mandado de segurança, através da Lei 12.016/09.
Detalhe número 1: a lei do “novo” mandado de segurança trata também do mandado de segurança coletivo, que vem disciplinado no mencionado projeto, conhecido como “Código de Processos Coletivos”. Detalhe número 2: o projeto disciplina - considerando que elaborado por quem entende do assunto - o mandado de segurança coletivo de forma diversa da que consta da recente Lei 12.016/09!
Algum gênio dirá: “lei posterior pode derrogar a anterior”. Jura? Não é esse o problema. Se o Congresso deseja sistematizar as leis existentes, por que edita uma lei sem considerar que nas casas legislativas tramita um projeto que versa sobre o mesmo tema?
É fato que nesse exemplo concreto, bem a lei posterior (o “Código de Processos Coletivos”) poderia revogar alguns dos estúpidos dispositivos da Lei 12.016/09. Mas, a questão não é essa. O problema é o excesso legislativo e o conflito gerado que, de fato, “atrapalha a vida dos brasileiros”.
Sem que haja o menor controle, as leis vão sendo produzidas, a fim de que exista uma justificativa para a existência de determinados parlamentares que se apegam ao que produzem, a despeito da colaboração dos demais e a despeito da inutilidade de muitos diplomas. Esses parlamentares, não raro descompromissados com seu eleitorado e destituídos de ideologia, crêem, ainda hoje, que seu papel seja exatamente esse: produzir leis. É lamentável.
Há mais a considerar: lembremos que são os assessores produzem muitas das leis vigentes.
A matéria publicada em 25 de agosto de 2008, no portal UOL, que comentei na coluna intitulada “Juízes legisladores”, publicada aqui em Última Instância, é alarmante e confirma o fato, pois informa que os congressistas contam com "Ghost-writers das leis”, que “moldam a maioria dos projetos do Congresso”.
São as impressões pessoais desses técnicos, ou seja, aquilo que eles julgam como válido, como necessário para a Nação, que passam a plasmar os projetos de leis, que depois são votados (sem muito critério).
Conforme mencionei na referida coluna, eles (os assessores parlamentares) não nos representam e, em muitos casos, tampouco conhecem profundamente a matéria que opinam, a despeito de terem sido concursados. Menos ainda, os tais “consultores externos”, mencionados na matéria. A que interesses atendem?
O que é mais grave ainda: alguns congressistas passaram a criticar o STF (Supremo Tribunal Federal) que passou a editar súmulas vinculantes. Detalhe, a edição dessas súmulas encontra respaldo em emenda constitucional e legislação ordinária que disciplina o procedimento de sua edição, modificação e extinção.
Desnecessário apontar que eles, os legisladores, concederam esse poder ao STF, mediante atividade legislativa!
Desnecessário anotar que as súmulas, obviamente, não vinculam o legislativo (nem poderiam) e, conforme a recente experiência vem demonstrando, cabem apenas nas áreas em que o Legislativo se mantém inerte. É isso mesmo. Por mais paradoxal que seja, o legislador deixa de legislar onde deveria, embora legisle bastante e, contraditoriamente, onde deveria se abster.
Notem a loucura: permitem a edição das súmulas; depois, criticam algumas delas (como ocorreu no caso da disciplina do uso de algemas pela polícia). Falam da ausência de legitimidade para o STF disciplinar certas matérias. Contudo, portadores da representatividade do povo, deixam seus ofícios aos assessores e não mudam os temas que devem ser disciplinados.
Portanto, a indignação que demonstram quando o STF sumula não parece verdadeira, pois nem editam nova emenda que proíba/restrinja as mencionadas súmulas, nem legislam para mudar o conteúdo das súmulas que criticam.
Será difícil acabar com o “entulho”. No caso, a criatura, para além de muito falar das qualidades do criador, ainda hoje, serve como justificativa de sua existência. Pena que as demais funções do Legislativo (tão importantes quanto legislar) não são desempenhadas a contento, nem mesmo merecendo o mesmo destaque.

*** José Marcelo Vigliar é advogado em São Paulo. Formado pela USP, é mestre e doutor em direito processual civil pela mesma universidade. Foi promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo, de 1991 a 2004, e procurador do Estado de São Paulo, de 1990 a 1991. É membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto de Estudos Direito e Cidadania (IEDC). Leciona na Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Publicou Ação Civil Pública e Tutela Jurisdicional Coletiva, entre outros livros.

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