terça-feira, 2 de março de 2010

JUIZ GARZÓN: DE PERSEGUIDOR A PERSEGUIDO...

FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA
O juiz de instrução espanhol Baltasar Garzón, de perseguidor ultraconhecido (justamente por isso angariou incontáveis inimigos), passou agora a ser perseguido pela magistratura espanhola. Está sendo processado por prevaricação no Tribunal Supremo e, paralelamente, no Conselho Geral do Poder Judicial, e corre o risco de perder o cargo e de ser “jubilado”. Por quê? Porque tomou a iniciativa de investigar as circunstâncias das mortes e desaparecimentos (calcula-se em 100 mil) da era do General Franco (era da Guerra Civil de 1936-1939).
A apuração desses fatos está coligada com o chamado direito à memória e à verdade —direito de perpetuar na memória coletiva as atrocidades praticadas para que não sejam repetidas e direito de se descobrir a verdade das mortes e dos desaparecimentos durante a época da ditadura militar.
Os ultradireitistas (políticos, organizações sociais e magistrados), amantes da política fascista de Franco, no entanto, estão ávidos para “eliminar” do mapa jurídico o citado juiz, que meteu a mão numa ferida ainda aberta, que é a do fanatismo, do franquismo, do ultraconservadorismo.
Argentina, Chile, Bolívia, El Salvador, Equador, Guatemala, Haiti, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e tantos outros países já implantaram suas “Comissões da Verdade” (para a apuração dos crimes das respectivas ditaduras). Argentina e Chile, por sinal, foram mais longe: estão punindo, inclusive penalmente, os torturadores, levando muitos deles para a cadeia.
O juiz de instrução Baltasar Garzón (da Audiência Nacional), em resposta a várias petições legítimas dos familiares das vítimas, determinou a abertura de um procedimento investigativo. Uma das primeiras providências consistiu na abertura de várias fossas, para descobrir a identidade das pessoas mortas.
A reação ultradireitista foi imediata. O ostracismo que diversos setores antidemocráticos da Espanha —que conta tanto com militantes da direita como da esquerda— querem impor a Garzón é muito preocupante, seja do ponto de vista jurídico, seja do ponto de vista político. E estarrecedor.
O fantasma da ideologia da repressão, da quebra das regras democráticas, do desrespeito ao jogo democrático liberal não desaparece nunca. Nem na Europa, nem no Brasil, nem em qualquer lugar do mundo. Quando não forjam golpes militares e/ou armados, caem no desatino de processar um juiz (de instrução) por querer apurar delitos contra a humanidade cometidos por uma ditadura, que constitui um risco permanente para a democracia liberal. O que está em jogo, desde logo, nesses processos contra Garzón, é a própria autonomia (independência) da magistratura (cf. Paolo Flores D’Arcais, El País de 18.02.10, p. 27).
O argumento central para a abertura de tais processos consiste no seguinte: o juiz Garzón, ao tentar apurar os crimes da ditadura franquista, teria violado a lei de anistia espanhola. Observando tudo sin ira et studio, claro que juridicamente o juiz tem razão, porque as leis de anistia, pelo direito internacional e universal, não valem em favor daqueles que cometem crimes contra a humanidade (e o terrorismo de Estado de uma ditadura é típico crime contra a humanidade). Ninguém pode ser acusado de prevaricação quando cumpre o jus cogens(o direito universal).
Os crimes contra a humanidade são crimes que não admitem anistia nem são prescritíveis. É por isso que em favor do juiz Garzón mobilizaram vários juristas internacionais (El País, 16/02/10, p. 8), que fizeram e publicaram um abaixo assinado de solidariedade, manifestando desapontamento com a iniciativa de processá-lo (e “jubilá-lo”) por estar atuando em favor das vítimas da ditadura franquista.
Carla del Ponte (que foi membro do Ministério Público que atua junto ao Tribunal Penal Internacional), Zaffaroni (que foi um dos principais protagonistas na Argentina para derrubar as leis internas de anistia aos militares da ditadura), Juan Guzmán (juiz chileno que abriu processos contra Pinochet e a ditadura militar chilena) e tantos outros querem testemunhar em favor do juiz Garzón.
Detalhe interessante é que por trás de toda essa movimentação contra o citado juiz acham-se tanto militantes da direita como da esquerda. É incrível como os levantes antidemocráticos percorrem todos os meandros dos arcos ideológicos. Os processos abertos contra o juiz Garzón, por ter tentado investigar os crimes da era franquista, parecem dar razão à tese hobbesiana do homo homini lupus. Não é fácil enfrentar as ditaduras, mesmo quando elas matam, torturam ou desaparecem com pessoas.
Criticando a postura dos magistrados que querem “jubilar” Garzón, José Saramago escreveu (El País, 13/02/10, p. 13): “Nunca houve uma idade de ouro da Justiça. Hoje, nem ouro nem prata, [porque] vivemos em tempos de chumbo. Que o diga o juiz Garzón que, vítima do despeito de alguns de seus pares demasiadamente complacentes com o fascismo que perdura por detrás do nome de Falange Espanhola”.
No Brasil também os ultradireitistas não estão mortos. O PNDH-3 (Plano Nacional de Direitos Humanos), aprovado pelo decreto presidencial 7.037, de 21/12/09, continua gerando muita polêmica porque criou a Comissão Nacional da Verdade, que iria apurar tão-somente os delitos da “repressão política”. Diante da reação das Forças Armadas, a Comissão tem agora a tarefa de averiguar os fatos praticados “pelos dois lados” (pelos agentes do Estado assim como pelos guerrilheiros esquerdistas).
As opiniões antagônicas, claro, contam com forte teor ideológico. Quem tem simpatia pelas teses e valores esquerdistas apoia a criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes da ditadura brasileira (1964-1985).
Os direitistas radicais, que defendem as teses e os valores das forças repressivas, são, evidentemente, contrários a tudo isso. Dizem: se for para apurar, que apurem “os dois lados”. A exoneração pronta e imediata do general Maynard Santa Rosa (do Departamento-Geral de Pessoal do Exército), em fevereiro de 2010, por ter criticado a Comissão da Verdade (que, para ele, seria a “comissão da calúnia, composta de fanáticos”), bem retrata a polêmica ideológica antes referida.
É preciso controlar essas reações ultradireitistas (e antidemocráticas). Nossa civilização atual demorou três séculos (desde o Iluminismo, portanto) para chegar ao estágio democrático em que chegou. Na origem dos levantes antidemocráticos e ditatoriais quase sempre está um grupo de militares. Daí o acerto da punição contra o general.
Recorde-se que “entre os 18 do Forte de 1922 e a bomba do Riocentro de 1981, ocorreram pelo menos 20 episódios relevantes de insubordinação militar, um a cada três anos [...] durante a ditadura de 1964-1985 a anarquia (militar) produziu e institucionalizou um aparelho repressivo que se deu à delinquência da tortura, do assassinato de cidadãos e do extermínio de militantes de organizações esquerdistas. Começaram combatendo os grupos que, entre 1966 e 1973, de lançaram num surto terrorista. Terminaram com um pedaço dessa máquina fazendo seu próprio terrorismo, botando bombas em instituições acadêmicas, bancas de jornais e entidades como a OAB e a ABI” (Elio Gaspari, Folha de S.Paulo, 14/02/10).
Com levantes militares e reações ultradireitistas não se brinca, porque retratam posturas radicais, contagiantes e perigosas. Daí a imperiosa necessidade de recordarmos, permanentemente, para a atual e futuras gerações, o valor da democracia liberal, a importância do Estado pluralista, enfim, as bases e os princípios do Estado constitucional e humanista de direito (muito superior ao estado inconstitucional e desumanista de direita ou de esquerda).

*** Luiz Flávio Gomes é mestre em direito penal pela USP e doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madrid. Foi promotor de Justiça em São Paulo de 1980 a 1983 e juiz de direito em São Paulo de 1983 a 1998. É professor honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria (Arequipa, Peru) e professor de vários cursos de pós-graduação, dentre eles o da Facultad de Derecho de la Universidad Austral (Buenos Aires, Argentina) e o da Unisul (SC). É consultor do Iceps (International Center of Economic Penal Studies), em New York, e membro da Association Internationale de Droit Penal (Pau-França). É diretor-presidente da Rede LFG (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes), que promove cursos telepresenciais com transmissão ao vivo e em tempo real para todo país. É autor de vários livros, entre eles: Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, Penas e Medidas Alternativas à Prisão e Presunção de Violência nos Crimes Sexuais.

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