Priscila*, de 38 anos, subiu o tom num debate sobre o
caso do João de Deus numa rede social: algumas internautas
afirmaram achar estranho que uma mulher fique calada durante anos e só agora
acuse o médium de abuso sexual. A contestação coloca em xeque o depoimento de
mais de 300 vítimas. Mas aconteceu algo parecido com a carioca, que trabalha
com serviços gerais -- por isso ela ficou tão nervosa ao ler sobre o assunto.
Ela foi abusada dos 8 aos 11 anos por um membro da família e disse na internet:
"Vamos parar
de culpar a vítima. Já basta a culpa que carregamos
durante anos". Ela conta sua história à Universa.
"Aos 8 anos, minha
mãe saía para trabalhar, e me deixava na casa da minha tia, em cima da nossa.
Ali moravam ainda uma prima com o marido dela e o filho desse casal.
Nos primeiros dias,
lembro que foi tranquilo, até que uma vez, dentro da piscina de casa, esse
marido da minha prima ficou
passando a mão no meu bumbum. Dizia que era
brincadeira. No dia seguinte, foi para os peitos e a vagina. Eu lembro que
ficava parada, sem me mexer ou olhar para ele. Era uma sensação horrível.
Ele dizia que era um
segredo nosso, e que se eu contasse para alguém, não acreditariam em mim.
Falava ainda que minha mãe deixava aquilo acontecer, que era para eu aprender
mais sobre a vida. Afirmava que era 'santo', e não me deixaria me perder no
mundo. Ele é evangélico, criou os filhos na igreja e hoje é um pastor famoso na
cidade onde vive, no Espírito Santo. Até hoje lembro dele falando: 'olha que
gostoso, está fazendo cócegas'. E me fazia tocá-lo também. Até que ele mudou
para o Espírito Santo.
Decidi contar tudo para
minha mãe, porque ele tentou a penetração quando eu fiz 11 anos. Foi num dia em
que soube que iríamos todos viajar para a casa dele, então fiquei apavorada.
Chamei minha mãe e falei tudo. Ela me olhou e me deu um tapa na cara. Disse
para eu calar minha boca, antes de me dar socos na cabeça. Fui
acusada de mentir, porque ele era um homem de Deus e bem
casado e, portanto, sem necessidade de 'pegar' qualquer uma.
Ele estava em casa
neste momento, e como ela gritou muito, acho que ouviu a briga, porque antes de
todos sairmos, ele inventou uma desculpa e viajou primeiro. E nunca mais fez
nada comigo. Apesar da briga, viajamos, e chegando lá na casa deste homem, ele
me olhava desconfiado. Cheguei a contar para uma prima, e lembro de ouvir que
ele fazia a mesma coisa com ela.
Aos 13 anos, ou seja,
dois anos depois disso tudo e sem minha mãe falar mais nada sobre o assunto, um
irmão dela foi nos visitar. Lembro de estar dormindo quando senti algo puxando
meu short, mas quando abri os olhos não vi ninguém. No dia seguinte, senti
novamente, e consegui segurar a mão da pessoa que tentava me tocar: era meu
tio. Ele se assustou, foi embora no dia seguinte e nunca mais nos vimos. Não
contei a ninguém sobre isso, porque não iriam acreditar.
É
muito difícil acreditarem nas vítimas porque geralmente os
abusadores são homens de família. Às vezes, é difícil acreditar em nós mesmas.
Parece que tudo foi um pesadelo, ou coisa da nossa mente. Quando eu vejo esse
homem, ponho em dúvida minhas lembranças. E hoje ele é um pastor bem famoso.
Uma das filhas dele
simplesmente se distanciou da família e há três anos mora na Austrália. Às
vezes, me pergunto se ela não sofreu também.
Penso que não posso
mudar o que aconteceu comigo, mas também não posso deixar isso me consumir.
Hoje em dia, não deixo o que passei me afetar tanto. Já sofri muito calada.
Passei anos sem dormir à noite direito. Não deixava ninguém me encostar. Não
gosto que me toquem. Também tenho crise de ansiedade, não suporto gritos e
detesto sexo.
Hoje, estou casada e
tenho quatro filhos. Meu marido sabe de tudo. Uma vez, vi a minha filha mais
velha, hoje com 22 anos, perto desse homem que abusou de mim. Ela tinha 13.
Quase tive um treco. Foi quando contei tudo para ela. Sua reação foi a de
chorar e me pedir desculpas por não saber de nada."
*Omitimos
o sobrenome para proteger a entrevistada.
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