Quando o poeta italiano Girolamo Fracastoro criou o
personagem Syphilis, em 1530, não imaginava que ele emprestaria seu nome a uma
moléstia infecciosa que, segundo relatos, fora trazida das Américas nas
caravelas de Cristóvão Colombo. Nos versos de Fracastoro, Syphilis é um pastor
de rebanho grego que desperta a ira divina e é castigado com pústulas pelo
corpo. Quase 500 anos depois, o mal provocado por uma bactéria volta a ser
motivo de preocupação, agora entre profissionais de saúde. E ele não vem
sozinho. Outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e conhecidas do homem
há milhares de anos - a gonorreia é mencionada no Antigo Testamento
- parecem ter retornado com a força de uma praga bíblica.
Quem avisa é o Centro de Controle e Prevenção de Doenças
americano, o CDC. Só nos Estados Unidos, os números de episódios de sífilis,
gonorreia e clamídia registraram, em apenas um ano, aumento de 15,1%, 5,1% e 2,8%,
respectivamente. No Brasil, o cenário estimado não é muito diferente
- como apenas os casos de HIV e de sífilis em gestantes e bebês são notificados
obrigatoriamente ao Ministério da Saúde, é difícil ter estatísticas gerais mais
fidedignas. "DST virou tabu no país, ninguém mais toca no assunto. E o
pior é que se minimiza o real risco de contágio", critica a médica Márcia
Cardial, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
(Febrasgo).
Na falta de números do governo federal, dados da
Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo acusam que as ocorrências de sífilis
por transmissão sexual cresceram 603% em seis anos. O salto foi de 2 694 em
2007 para 18 951 em 2013. Em outros estados, o panorama não é menos
preocupante. Em 2013 e 2014, Acre, Pernambuco e Paraná registraram crescimento
de 96,1%, 94,4% e 63,1%,
respectivamente. Para especialistas, a prevenção dessa e de outras DSTs é
ignorada pela população. "Diante da facilidade de se fazer o exame e do
baixo custo do tratamento, a situação beira o absurdo", afirma a médica
Cláudia Jacyntho, Ph.D. em tocoginecologia pela Universidade Estadual de
Campinas, a Unicamp.
A julgar pelos números do ministério, a sífilis ameaça
cada vez mais gestantes e bebês por aqui. De 2005 a 2013, os casos de grávidas
com a infecção pularam de 1 863 para 21 382, uma elevação de mais de 1000%! O drama é que
a enfermidade pode passar de mãe para filho, gerando a sífilis congênita. No
mesmo período, os episódios dessa ameaça tiveram um crescimento de 135%. "A melhora
na vigilância resultou em um aumento nas notificações", explica Adele
Benzaken, diretora-adjunta do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do
Ministério da Saúde. "Além disso, o número de testes realizados por
gestantes mais que triplicou entre 2008 e 2013."
Ainda assim, tudo leva a crer que a população em geral
baixou a guarda contra os males que se aproveitam do sexo desprotegido. Um levantamento
do próprio ministério de 2009 calculou que algo em torno de 10 milhões de
brasileiros já apresentaram sintomas de uma DST, como lesões, verrugas e
corrimentos nos órgãos genitais. Na mesma pesquisa, descobriu-se que só 24,3% dos homens e 22,5% das mulheres que procuraram um serviço
do SUS foram orientados a fazer o exame que detecta a sífilis - os números
são um pouco maiores para o teste de HIV. "Alguns profissionais da área
ainda pensam que só pega esse tipo de infecção quem é promíscuo, e isso não é
verdade", diz o ginecologista Mauro Romero, presidente da Sociedade
Brasileira de Doenças Sexualmente Transmissíveis. "Qualquer pessoa
sexualmente ativa, independentemente de faixa etária, classe social ou opção
sexual, pode contrair uma DST. Basta praticar sexo inseguro", frisa o
médico, que também é professor da Universidade Federal Fluminense.
O CDC americano alerta em particular para o boom de DSTs
entre os jovens de 15 a 24 anos. De acordo com a agência, eles respondem por 53% dos casos de gonorreia e 65%dos de clamídia
nos Estados Unidos. Mas por que essa turma, apesar dos materiais educativos
distribuídos nas escolas, insiste em fazer sexo sem proteção? Alegações como
"reduzir o prazer", "ser difícil de colocar",
"prejudicar a ereção" e "não ter sempre à mão" estariam
entre as principais justificativas (ou desculpas). Quase quatro em cada dez
brasileiros de 18 a 29 anos ouvidos na pesquisa "Juventude, Comportamento
e DST/Aids", que entrevistou 1 208 pessoas nessa faixa etária em 2012,
admitiram não usar preservativo em sua última relação. É mais uma evidência que
corrobora uma triste constatação: nesse grupo, o fator de risco para doenças
que mais cresceu nas últimas duas décadas foi o sexo inseguro. De 1990 a 2013,
migrou da 12ª para a 2ª colocação na faixa dos 15 aos 19 anos e do 6º para o 2º
lugar para quem tem entre 20 e 24 anos - só perde para o consumo de álcool.
Qualquer pessoa sexualmente ativa, independentemente de
faixa etária, classe social ou opção sexual, pode contrair uma DST. Basta
praticar sexo inseguro.
Essa espécie de negligência, muitas vezes inconsciente,
tem a ver também com o fato de as DSTs parecerem coisa do passado. "Os
jovens de hoje não têm medo da aids porque não viram ninguém morrer do
problema. Para eles, virou algo crônico. Da mesma forma, não se dá a devida
importância a outras DSTs", acredita a ginecologista Márcia Cardial. Que
ilusão! O preservativo (masculino ou feminino) continua mais
na moda do que nunca: é o método mais eficaz para barrar vírus como o HIV e o
da hepatite B e as bactérias por trás de sífilis, gonorreia e clamídia. E isso
vale tanto para sexo vaginal como oral e anal.
"Embora o jovem seja o principal grupo de risco, é
preciso lembrar que ninguém está imune. Você pode ter 40, 50, 60 anos e pegar
uma DST", reforça Romero. Em caso de suspeita, a recomendação é procurar
um posto de saúde para fazer o diagnóstico correto - o resultado de um teste para
sífilis, por exemplo, sai em 30 minutos. Essa agilidade é bem-vinda porque o
tratamento deve ser iniciado quanto antes. Diante de um laudo positivo, os
parceiros ou parceiras também devem ser medicados, estando com sintomas ou não.
"A terapia adequada inclui a dose certa e um tempo exato. Caso contrário,
não produz o efeito esperado", salienta Cláudia Jacyntho. Isso é crítico
em relação aos antibióticos, receitados no contra-ataque às DSTs causadas por
bactérias. Se não forem contidas, podem retaliar não apenas a região genital -
até danos ao cérebro são documentados.
Hoje, felizmente, se fala mais no combate à aids e ao HPV. A alta prevalência da clamídia - que lidera o ranking
das DSTs no país, com 1,9 milhão de novos casos por ano - e a ascensão da
sífilis pedem que o alerta se estenda a outros males ligados ao sexo
desprotegido. Se você não ouviu falar nelas ultimamente, que dirá, então, de
tricomoníase, donovanose e cancro mole? Todos esses nomes cabeludos são
repelidos com informação, consciência e atitude. "As pessoas só se
previnem contra o que conhecem. Por isso, as campanhas educativas precisam
encontrar eco na sociedade", diz a médica Tânia Vergara, da Sociedade
Brasileira de Infectologia. "Quando o assunto é DST, prevenção é sinônimo
de preservativo", declara.
Eis um conselho sempre atual e que pode poupar muita gente de seguir o destino
de Syphilis e seus companheiros reais de sofrimento.
Cara a cara com os bandidos.
Fichamos as DSTs que estão com tudo hoje - elas podem ser
evitadas com a camisinha
Sífilis.
- CAUSADOR: Treponema
pallidum (bactéria)
- SINTOMAS
INICIAIS: Feridas
na região genital que não ardem ou doem, e caroço na virilha
- TRATAMENTO: Prescrição
de antibiótico (penicilina benzatina)
- PREVENÇÃO: Preservativo
masculino ou feminino
Clamídia.
- CAUSADOR: Clamidia
trachomatis (bactéria)
- SINTOMAS
INICIAIS: Dor
ao urinar (e nos testículos), corrimento amarelado ou sangramento durante
a relação sexual
- TRATAMENTO: Prescrição
de antibiótico adequado
- PREVENÇÃO: Preservativo
masculino ou feminino
Gonorreia.
- CAUSADOR: Neisseria
gonorrhoeae (bactéria)
- SINTOMAS
INICIAIS: Secreção
com pus que sai pela uretra no homem e vagina ou uretra na mulher. Coceira
na uretra e ardência para urinar
- TRATAMENTO: Prescrição
de antibiótico adequado
- PREVENÇÃO: Preservativo
e higiene após a relação
Herpes.
- CAUSADOR: Herpes
vírus humano
- SINTOMAS
INICIAIS: Formigamento,
ardor e vermelhidão no local e formação de pequenas bolhas dolorosas
- TRATAMENTO: Não
há cura. O tratamento previne as erupções
- PREVENÇÃO: Preservativo
e higiene antes e depois.
Falta remédio?
Escassez de matéria-prima. Foi o que alegaram as
autoridades brasileiras para explicar a crise no abastecimento da penicilina
benzatina, antibiótico usado contra a sífilis. O remédio chegou a faltar
em 60% dos estados. O ministério comprou um novo lote para distribuir aos
postos em caráter emergencial, e o material já está sendo distribuído a fim de
sanar o problema - e evitar suas sérias consequências.