Se um dia você for tomado
por uma sensação de insegurança, lembre-se deste episódio ocorrido com a
escritora britânica Agatha Christie, a famosa autora de livros de suspense.
Em 1958, convidada
para uma festa em um luxuoso hotel de Londres para comemorar o sucesso de sua
peça A Ratoeira, Christie foi barrada por um porteiro que não a
reconheceu. Em vez de mandar o clássico "Você sabe quem eu sou?", ela
humildemente se virou e foi se sentar sozinha no lobby. Apesar de ser a
escritora que mais vendia livros na época, ela ainda se sentia paralisada por
"uma timidez cruel, horrível e inevitável".
Como alguém tão
bem-sucedido pode se sentir tão inseguro? Essa é a contradição abordada no
livro Shrinking Violets (expressão usada para denotar pessoas
extremamente tímidas), que acaba de ser lançado na Grã-Bretanha. Nele, o
historiador Joe Moran explora a timidez na política, na literatura e na
psicologia.
Moran conta que é
tímido desde que se conhece por gente. E seus sentimentos podem ter
influenciado sua carreira antes mesmo de ele dedicar suas pesquisas acadêmicas
ao assunto. Seus livros anteriores exploraram as minúcias do cotidiano, como a
história de objetos e rotinas do dia a dia e os hábitos televisivos dos
britânicos.
"A timidez pode
transformar alguém em um antropólogo amador, de tanto que a pessoa se coloca na
posição de observadora", afirma.
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Em Shrinking
Violets, ele volta sua atenção para os pensamentos e sentimentos sobre os
quais muitas pessoas têm vergonha de conversar. A natureza estranha e contraditória
da timidez foi o que chamou sua atenção para a riqueza do assunto.
'Campos minados'.
Muitos de nós
acreditamos que a timidez é algo que permeia todo tipo de situação. Mas, para
Moran, ela "avança e recua" dependendo do contexto.
O próprio historiador
se diz mais à vontade dando uma aula para centenas de alunos do que respondendo
a perguntas de um punhado deles, por exemplo. Ou fica inseguro quando se vê
diante de várias rodinhas em uma festa. Pequenos espaços comuns, como
elevadores e salas de espera, também são campos minados para o tímido.
Moran relembra o caso
do duque de Portland, um aristocrata do século 19 que era tão tímido e
reservado que mandou construir um labirinto de túneis sob sua mansão para não
ter que ficar cara a cara com seus empregados.
Mas nem todos os
tímidos são introvertidos. Susan Cain, autora do livro O Poder dos Quietos,
acredita que as duas personalidades são, na realidade, bastante diferentes:
enquanto os introvertidos precisam de um tempo sozinhos e não ligam para o que
os outros pensam deles, os tímidos podem se sentir carentes de companhia e
ficam ansiosos quanto à opinião dos outros.
O livro de Moran
explora o amplo espectro da timidez. Ele cita exemplos como o biólogo Charles
Darwin, que se dizia alguém "sem a menor sofisticação social" e
"um orador terrível"; a atriz Keira Knightley, que afirma não
conseguir começar uma conversa em uma festa; o autor e neurologista Oliver
Sacks, o ex-presidente francês Charles de Gaulle e o cantor Morrissey, dos Smiths.
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Algumas dessas
personalidades acabam tirando partido de um recurso chamado Maskenfreiheit
- termo em alemão que expressa a liberdade sentida ao se usar uma máscara ou
representar um personagem.
Essa sensação de
"irrealidade" ajuda o próprio Moran quando ele tem que falar em
público, por exemplo. Mas a timidez e a ansiedade voltam assim que a pessoa
percebe que sua verdadeira personalidade está exposta.
Estratégia de
sobrevivência.
Está claro que a
timidez não é um empecilho para o sucesso. Mas será que ela traz algum
benefício palpável? Alguns biólogos evolucionistas argumentam que se trata de
um sentimento que vem de comportamentos pré-históricos que ajudavam na
sobrevivência.
Já estudos recentes
sobre a personalidade de animais avaliaram o grau de timidez e extroversão de
indivíduos de várias espécies, observando que frequentemente a timidez e a
ansiedade têm suas compensações.
Enquanto animais mais
corajosos podem ter mais parceiros para acasalar e mais comida, os tímidos,
relegados a segundo plano, conseguem evitar serem atacados - nos dois casos,
trata-se de estratégias evolucionárias bem-sucedidas.
Para Moran, no
entanto, a timidez não é apenas um traço primitivo. "Temos a capacidade de
virarmos a atenção para nós mesmos enquanto estamos cientes de que deve haver
outras pessoas que pensam em nós", diz.
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Por vivermos em
grandes grupos, começamos a dar importância ao que os outros acham de nós -
mesmo se isso traz sensações desconfortáveis, como a vergonha e o nervosismo.
"Criamos esses
estranhos ciclos viciosos em que nos achamos tímidos e sentimos vergonha
disso", afirma o autor.
As falhas na linguagem.
Moran acredita que a
timidez humana pode ser agravada por problemas de linguagem. "Quando
falamos, estamos emitindo algo muito próximo de nossos sentimentos. Os tímidos
estão mais cientes disso", explica.
A consequência disso
pode ser o chamado "efeito da escada" - a tendência a rememorar o que
foi dito e o que deveria ter sido dito.
Trata-se de uma
condição altamente frustrante, mas que pode ter seu lado bom. "Muitas das
obras de arte e literatura que menciono em meu livro vieram dessa sensação de
que a palavra ou o contato pessoal são imperfeitos ou fracassam", afirma
Moran. "Os artistas acabam conseguindo se expressar por meio de suas
obras."
O autor explora ainda
a diferença com que a timidez é expressa e avaliada em várias culturas.
Enquanto em países como a Finlândia, por exemplo, a timidez tem uma conotação
mais positiva por evocar a ideia de modéstia, em outros, como os Estados
Unidos, a timidez pode agora ser diagnosticada como um distúrbio psiquiátrico.
A decisão foi condenada por muitos psicólogos, que acreditam se tratar de uma
tentativa de "tratar" ou "corrigir" qualquer aspecto que
saia da norma.
Moran se diz dividido
em relação ao assunto. "A timidez pode ser debilitante, pode ser uma dor e
um fardo. Certamente, há casos extremos em que a pessoa não consegue viver normalmente,
sofrendo de uma ansiedade social extrema. Mas acho que temos uma tendência a
dar remédios e tratamentos para coisas que podem ser apenas parte da
experiência humana", diz.
Leia a versão original desta reportagem (em
inglês) no site da BBC Future.
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