De
uma hora para outra, o sujeito, em geral jovem, começa a perder peso, sentir
dores abdominais e ter diarreias constantes. Embora
esses não sejam sintomas específicos, muitas vezes é assim que se manifestam
as doenças inflamatórias
intestinais (DII), conjunto de distúrbios cuja incidência vem
crescendo mundo afora. “Não há estudos epidemiológicos no Brasil, mas notamos
na prática um aumento nos casos, em parte pela melhora no diagnóstico, em parte
por razões ainda não totalmente esclarecidas”, contextualiza a
gastroenterologista Didia Cury, da clínica Scope, em Campo Grande (MS).
A
médica, que realiza pesquisas em parceria com a Universidade
Harvard, nos Estados Unidos, organizou
um simpósio internacional na capital sul-matogrossense para discutir, com
outros especialistas, novidades e aspectos pouco conhecidos da doença de Crohn e
da retocolite ulcerativa, os tipos mais comuns do transtorno. “A retocolite
ataca mais o intestino grosso, enquanto o Crohn pode afetar o sistema digestivo
da boca ao ânus e também outros locais, como pele, olhos e articulações”,
explica as diferenças o gastroenterologista Jaime Gil, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
A
teoria mais aceita é que a inflamação crônica é resultado de uma reação
exagerada do sistema imune à flora intestinal. Como nem sempre os sintomas são
claros, não é raro ver gente levando dez anos para receber o diagnóstico,
atraso que compromete a qualidade de vida. Com a meta de educar mais a
população sobre o tema, elencamos agora os pontos quentes recém-debatidos no
evento.
Novas armas com mais
foco.
Até
pouco tempo atrás, havia poucos fármacos disponíveis para tratar os casos mais
complicados de DII. Chegaram, então, medicamentos inovadores, os anticorpos
monoclonais, com a missão de inibir moléculas específicas por trás da
inflamação crônica – um dos principais é o anti-TNF. Nem sempre, porém, eles
atingiam o resultado esperado e ainda impunham efeitos colaterais. É aí que
entra a nova geração dessas medicações (caso do vedolizumabe e do
ustequinumabe), concebidas para agir apenas no local afetado pela doença, o que
reduz riscos e melhora a eficiência da terapia.
Hoje,
os anticorpos são indicados em quadros moderados e severos, mas se discute uma
mudança de abordagem. “Estamos prescrevendo essas substâncias mais cedo porque
elas parecem ser mais eficazes nos primeiros anos do que depois de uma década
com o problema”, conta Alan Moss, gastroenterologista e pesquisador de Harvard.
De olho na tuberculose.
Quem
toma medicamentos imunossupressores, caso do próprio anti-TNF, está mais
sujeito a desenvolver essa infecção. “Já é uma praxe procurar o micro-organismo
nos portadores de doença inflamatória intestinal, mas nem sempre esse
rastreamento é efetivo e refeito ao longo da vida”, diz o patologista Julio
Croda, da Fundação Oswaldo Cruz,
um dos palestrantes do evento.
A
demora no diagnóstico nesses casos traz complicações potencialmente fatais.
“Sem contar que contribui para a transmissão da tuberculose, que hoje mata mais
que a aids por aqui”, aponta Croda. O pesquisador estudou pacientes em
tratamento de DII na clínica Scope e descobriu que 3,8% deles tinham o bacilo
no sangue, incidência proporcionalmente maior que a da população em geral.
Por que o divã é
bem-vindo.
Estresse
e ansiedade fora de controle favorecem as crises nas doenças
inflamatórias intestinais. Na via oposta, essas condições por si podem gerar
angústia, irritação e medo, dificultando o convívio social e alimentando
quadros depressivos. Para se blindar dessa situação, que atrapalha o próprio
contra-ataque à DII, especialistas indicam um acompanhamento psicológico.
“A
doença impõe solidão, e o estresse emocional precisa ser administrado antes que
impacte na manifestação dos sintomas”, explica a psicóloga Daisy Maldaun, da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autora de um livro recém-lançado que traça o perfil
psicológico das pessoas com DII. Além da terapia, meditação e ioga são técnicas
recomendadas para ajudar na manutenção do equilíbrio mental, tão importante para
o sucesso do tratamento.
Homeopatia ajuda?
A
busca pela medicina alternativa costuma ganhar força quando os remédios
tradicionais falham no socorro ao intestino, o que não é tão raro de acontecer.
Daí a proposta da homeopatia de aliviar certas manifestações na DII. “O método
foca no indivíduo como um todo e traz um olhar cuidadoso que faz diferença na
percepção e no trabalho com os sintomas da doença”, diz Gilson Roberto,
psicólogo e homeopata de Porto Alegre e um dos participantes do simpósio.
O
tema, no entanto, ainda gera controvérsia. “Não há evidência científica de que
a homeopatia funcione na DII e práticas não comprovadas podem gerar frustração
e prejudicar a adesão ao tratamento convencional”, contrapõe Jaime Gil. Na
dúvida, o melhor a fazer é conversar com o especialista e jamais abandonar as
medicações anteriormente prescritas.
E a fertilidade, como é que fica?
Esse
assunto nem sempre é discutido no consultório ao longo do tratamento, mas
deveria. Isso porque a inflamação crônica – e até os fármacos que a combatem –
pode comprometer a capacidade reprodutiva de homens e mulheres com DII. Quando
o problema atinge o cólon (no intestino grosso), por exemplo, chega a
repercutir em regiões como o útero, onde o óvulo fecundado se aninha para dar
origem ao embrião.
Já
na ala masculina, o uso de alguns medicamentos está relacionado a uma baixa na
velocidade dos espermatozoides. “A DII afeta especialmente pessoas em idade
reprodutiva que, com medo e sem informação, adiam os planos de ter filhos. Só
que, quanto mais o tempo passa, maior é a queda na taxa de fertilização”,
analisa Didia. Felizmente, com acompanhamento médico, é possível, sim, garantir
a continuidade da família.
Para flagrar mais
cedo.
Uma
das ameaças que a turma com DII enfrenta é o maior risco de câncer colorretal.
“Isso porque, com o tempo, a inflamação constante favorece alterações nas
células que ficam nas paredes do intestino. E essas pequenas lesões podem
evoluir para um tumor”, resume o coloproctologista Guilherme Cutait, da
Universidade de São Paulo (USP).
A
boa notícia é que, com a nova safra de aparelhos endoscópicos e outros métodos
de imagem, dá para detectar mais precocemente essas feridinhas com potencial de
virarem malignas no futuro. E mais: na endoscopia, dá até para remover os
pontos suspeitos durante o próprio exame. “Só que estamos falando de
tecnologias de ponta que ainda não estão disponíveis em todos os lugares do
país”, pondera o gastroenterologista Alexandre Carlos, também da USP.
O que o futuro
reserva.
Existem
três promessas à vista. Uma delas vem de estudos com comprimidos de uso diário
para controlar a doença – baita vantagem se pensarmos que os anticorpos
monoclonais atuais dependem de injeções periódicas. Já a terapia com
células-tronco tenta fazer uma correção no sistema imune para ele parar de
agredir o aparelho digestivo. “Só que esse método parece beneficiar um grupo
pequeno de pacientes, além de o efeito ser temporário”, conta Alan Moss, que
testou a técnica em Harvard.
Por
fim, há o transplante fecal, a transposição de bactérias de uma flora saudável
para o intestino doente. Moss está avaliando essa opção e adianta que ela
esbarra, por ora, no mesmo problema de uma resposta de curta duração. A chave,
diz o pesquisador, é investigar mais para entender melhor esses males. “Eles
têm mecanismos diferentes e pedem uma abordagem individualizada.”
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