FONTE: Amanda Campos - iG São Paulo, TRIBUNA DA BAHIA.
No início, quando o pai de Jennifer Hanes começou a
fazer incursões noturnas a seu quarto, ela fingia estar dormindo. Mas cada
vez que sentia o cheiro de bebida exalar do hálito dele, a então menina de
menos de nove anos começava a se debater, na tentativa inútil de se
desvencilhar do agressor e evitar o que seria apenas o início de uma série de
abusos sexuais.
Os
estupros se repetiram de forma contínua por vários anos na casa da família em
Missouri, nos Estados Unidos. Para que sua mãe não desconfiasse de nada,
Jennifer conta que o pai, um professor do Kansas City, usava um urso de pelúcia
para abafar seu grito desesperado.
"Nem
lembro quantas vezes ele [pai] me violentou", confessou ela em conversa
com o iG. "Acabei mergulhando nos estudos para tentar superar essa
violência. Foi aí que surgiu minha paixão pela medicina", explica ela, que
atualmente é clínica geral no Texas.
Apesar
de ter sido estuprada durante grande parte da infância – dos sete aos nove anos
de idade –, Jennifer só teve coragem de falar do ocorrido em 2011. Ela afirma
ter se dado conta de que não havia superado a violência quando estava se
submetendo a um tratamento estético. Depois de a esteticista colocar uma toalha
quente sobre seu rosto, ela imediatamente se lembrou do método utilizado pelo
pai para calá-la durante os estupros e percebeu que precisava de ajuda para
superar o trauma.
"Pulei
da mesa e corri para o estacionamento. Chorei tanto aquele dia que não consegui
dirigir. Ali, sentada sozinha dentro do meu carro, comecei a gritar tudo o que
não pude na infância: 'Socorro! Alguém me ajude!'", lembrou ela.
Anos
mais tarde, já fazendo terapia, a norte-americana ponderava sobre denunciar ou não
o pai, já idoso, pelo crime, quando recebeu a notícia de que ele havia sido
atropelado por um carro e estava internado em estado grave. Ela, então, pediu
para conversar sozinha com seu agressor e o perdoou pelo crime.
"Disse
em seu ouvido que não havia esquecido as agressões e que aquilo [o acidente]
havia acontecido em resposta às maldades que ele cometeu contra mim no
passado", explica.
A
história de abusos vivida pela médica não é diferente das outras cerca de 120
milhões já notificadas por todo o mundo, segundo dados divulgados pela
Organização das Nações Unidas (ONU) em março. O estudo aponta que 1 em cada 10
jovens com menos de 20 anos foi vítima de estupro ou de outro tipo de violação
pelo mundo.
O
Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, informou que o estudo,
intitulado Hidden in Plain Sight, é o maior trabalho sobre violência contra
crianças já realizado. A pesquisa contém dados de 190 países.
Maiores índices.
A
África do Sul tem um dos maiores índices de estupro denunciados à polícia no
mundo, apontou o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos
(EACDH) em 2013. Dados da ONU mostraram que em 2012, o número de violações
documentadas pela polícia subiu para mais de 64 mil – ou 175 por dia. Em
crianças, dados da Solidarity Helping Hand de 2009 constataram que uma criança
era violentada sexualmente a cada três minutos no país.
Na
Índia, relatório do Centro Asiático para os Direitos Humanos apontou que crimes
sexuais contra crianças atingiram proporções epidêmicas: mais de 48 mil casos
de estupro foram registrados contra crianças entre 2001 e 2011. A partir de
2001, a Índia apresentou aumento de 336% dos casos: foram 2.113 registros em
2001. Dez anos depois, o número saltou para 7.112.
No
Zimbabue, houve, somente em 2011, 3.172 registros de estupro contra jovens em
todo o país. Em 2010, foram notificados 2.883, segundo o NewsdeZimbabwe. Uma
clínica em Harare, capital do país, afirmou ter atendido cerca de 30 mil
garotas e garotos que haviam sido estuprados entre 2006 e 2009, segundo o
jornal britânico "The Guardian".
Já no
Reino Unido, de 2012 a 2013, houve 18.915 crimes sexuais contra menores de 16
anos registrados na Inglaterra e no País de Gales, de acordo com a Sociedade
Nacional para a Prevenção da Crueldade a Criança (NSPCC, na sigla em inglês).
Desse número, 4.171 crimes de abuso sexual acometeram crianças do sexo feminino
com menos de 13 anos. Segundo a NSPCC, 1.267 crimes foram registrados contra
meninos com menos de 13 anos.
Nos
EUA, relatório do Departamento de Saúde e Serviços Humanos da Criança
descobriu, em 2010, que 16% dos jovens com idades entre 14 a 17 haviam sido
violentados naquele ano. Ao longo da vida, a chance de um jovem com idade entre
14 e 17 anos ser estuprado era de 28%.
Situação brasileira.
No
início deste ano, a SDH, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, apontou que o Brasil registra uma média de 87 denúncias de violência
sexual contra crianças e adolescentes por dia. O número teve como base as
denúncias registradas pelo Disque 100, que recebe e encaminha denúncias do tipo
em todo o País.
Segundo
o Disque 100, foram registradas 37.726 denúncias de violência sexual contra
crianças e adolescentes em todo o Brasil em 2012. Em 2013, esse número caiu
para 31.895, redução de 15,46%.
"O
estupro não é um ato de descontrole do sexo, mas de controle pela dominação do
corpo da vítima. É a moral patriarcal e machista que fabrica corpos com
diferentes marcadores de poder: corpos masculinos como possuidores de si e
capazes de dominar corpos femininos e infantis, objetos de alienação",
analisa Gabriela Rondon Rossi Louzada, pesquisadora do Anis, Instituto de
Bioética, Direitos Humanos e Gênero de Brasília.
Para
Gabriela, uma maneira de evitar esses crimes em longo prazo seria incentivar
mudanças no regime de gênero atual, repensando, por exemplo, atitudes padrão
para a masculinidade, padrões de sociabilidade e da relação entre adultos e
crianças.
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