FONTE: *** Claudia Nina - Revista, https://www.msn.com/
Tinha 65 anos, um gato, um ex-casamento razoável, dois filhos lindos e sumidos. O apartamento do Flamengo era ótimo, arejado. Aposentada, procurava cursos para fazer on-line, o joelho enguiçara para sempre. Andar até a esquina era um sufoco. Mas disso os pretendentes do site de relacionamentos que frequentava não poderiam saber jamais. Qualquer falha técnica, sobretudo na sua idade, pesava contra na balança dos novos arranjos. Sempre de preto, tentava fingir que tinha 10 quilos a menos. Nenhum regime tinha dado certo porque deixar de comer o que gostava era uma privação enorme para quem já vivia sem o que mais sentia falta naquela altura da vida: o beijo na boca. No site de relacionamentos, escreveu na descrição abaixo da foto: “Procuro um beijo bom.”
Um dos caras topou o encontro.
Era alto, tinha um cavanhaque ralo que ela achou pavoroso, mas aceitou. Encontraram-se em um restaurante na Lagoa. Ele não bebeu o vinho branco que ela pediu, mas refrigerante. Ela achou estranho, mas aceitou. Ficou no vinho para aliviar o nervosismo. O homem era simpático. Falava sem parar. Ela ouvia e ouvia. A expectativa era a de que a noite terminasse, claro, no beijo na boca.
Para chegar até aquele momento, ela aguentaria a conversa sem brechas para nada além de interjeições. Tentou não se incomodar com a forma como ele abria exageradamente a boca para comer, talvez na tentativa de não sujar o cavanhaque com a comida. Era horrível ver a caverna escura da boca do homem metendo a comida adentro – estavam um de frente para o outro e, portanto, a visão era inevitável. Um horror.
Ela sabia que não poderia exigir muito, já que não fazia uma boa figura, com tantas “falhas técnicas”, embora tivesse um rosto agradável, sorridente, um cabelo arrumado e olhos alegres. Tinha consciência dos seus pontos fortes.
O jantar terminou e foram caminhando para o carro.
A expectativa do beijo deu certo porque no meio do trajeto aconteceu. Beijaram-se e foi bom – apesar de os pelos do cavanhaque serem bastante incomodativos. A carência era enorme, e ela precisava beijar na boca mais do que tudo na vida. Não conseguiria viver com o homem falante nem por uma semana direto, contudo o beijo compensava a chatice e o horror da boca aberta escancarada na hora de comer. Beijaram-se várias vezes e depois ele a levou em casa.
O que se seguiu depois foram várias tentativas dela de repetir o encontro. Ele sempre prometendo “na semana que vem”, e a semana que vem nunca chegava. Ela custou a entender que aquilo era uma rejeição. O que o homem não havia gostado nela não conseguiu descobrir. Só sabia que ela não havia gostado de nada dele a não ser do beijo, que só foi bom na ausência de outro melhor. Havia os pelos, medonhos pelos do cavanhaque entrando na boca na hora do beijo. Um horror que ela suportou.
Depois da quarta insistência, ela desistiu. Depois ficou com raiva por ter insistido com um homem tão precário e que não calava a boca. Nem vinho bebeu. Ah, mas o beijo. Que falta faz um beijo na boca e a que desatinos a carência leva...
*** POR CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br Ouça o episódio mais novo do podcast da Claudia Nina: Uma ceia de Natal inesquecível. Conheça também a página oficial da autora.
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