FONTE: Camila Neumam, Do UOL, em São Paulo, (noticias.uol.com.br).
A substância
fosfoetanolamina, distribuída na USP (Universidade de São Paulo) de São Carlos
por supostamente ser capaz de curar o câncer, não tem comprovação de eficácia
contra a doença. Além disso, a sua distribuição à população é ilegal,
segundo a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
O UOL
tentou contatos com a USP na capital paulista e em São Carlos (232 km de São
Paulo) na manhã e tarde de quarta-feira (14) e na manhã e tarde da
quinta-feira (15), para explicar como a droga era fornecida para a população e
responder à declaração da Anvisa, mas a universidade não se pronunciou. O
pesquisador Gilberto Orivaldo Chierice, do Instituto de Química da USP de São
Carlos, que fabricou e distribuiu o composto por mais de dez anos, também
não foi encontrado pela reportagem nos telefones celular e residencial.
A substância não pode
ser considerada um remédio porque não foi testada oficialmente em humanos,
passo essencial para que um composto em estudo comprove que funciona, é seguro
e não tem efeitos colaterais. Pessoas recebiam as cápsulas com a fosfoetanolamina,
mas, até onde se sabe, não eram acompanhadas para verificar esses parâmetros.
As pesquisas
documentadas foram feitas com animais e células humanas in vitro,
primeiros passos de qualquer estudo científico. Mas ainda são necessárias
várias etapas de estudo para comprovar que ele realmente tem alguma função no
tratamento do câncer. A cura seria um passo além.
Sem um estudo
oficial, registrado pela Anvisa, a entrega de cápsulas
contendo fosfoetanolamina sintética para fins
medicamentosos infringe a lei 6.360/76, segundo a agência. A lei
impede a entrega, a venda e industrialização de medicamentos, drogas, insumos
farmacêuticos e correlatos para consumo sem o registro da agência.
"A
comercialização, bem como a exposição do produto fosfoetanolamina, estaria em
desacordo ao que prevê a Lei nº. 6.360/76, que em seu artigo 12
dispõe:"...nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os
importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo
antes de registrado...", citou em nota técnica enviada ao UOL.
A Anvisa chama a
entrega de "prática irregular segundo os princípios de segurança adotados
pelas principais agências reguladoras de medicamentos do mundo".
Contra a lei.
"No caso da
fosfoetanolamina, a Anvisa não recebeu qualquer pedido de avaliação para
registro desta substância, tampouco pedido de pesquisa clínica, que é a
avaliação com pacientes humanos. Isto significa que não há nenhuma avaliação de
segurança e eficácia do produto realizada com o rigor necessário para a sua
validação como medicamento", citou na nota.
No entanto, desde que
o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reconsiderou a
decisão que proibia a distribuição para alguns pacientes após
liminar do STF (Supremo
Tribunal Federal), pacientes e
parentes formam filas na sede do campus atrás da substância entregue gratuitamente dada a
apresentação das liminares (mais de 700 já foram concedidas em primeira
instância).
A distribuição das
cápsulas era feita livremente na universidade até uma portaria da USP de 2014,
baseada na lei 6.360/76, proibi-la. No entanto, não se sabe por que a USP
autorizou a distribuição por tanto tempo da droga, o que sempre foi ilegal pela
lei.
Depois da decisão
judicial, a USP e o Instituto de Química de São Carlos emitiram notas afirmando
que a droga não é um medicamento e que as cápsulas só seriam entregues para
quem apresentasse a liminar. De acordo com a IQSC, o estudo capitaneado pelo
professor aposentado Cherice foi feito de forma independente por ele. A USP
afirmou em nota que os mandados judiciais serão cumpridos, dentro da capacidade
da universidade.
"Ao mesmo tempo,
a USP está verificando o possível envolvimento de docentes ou funcionários na
difusão desse tipo de informação incorreta. Estuda, ainda, a possibilidade de
denunciar, ao Ministério Público, os profissionais que estão se beneficiando do
desespero e da fragilidade das famílias e dos pacientes", escreveu em
nota.
Segundo o advogado
Tiago Matos, diretor jurídico do Instituto Oncoguia, se comprovado que a USP
cometeu um ato ilegal, contrariando a legislação, ela pode ser responsabilizada
por isso. "Pode ser punição administrativa, criminal, mas quem vai punir é
outra história. É delicado", diz.
Droga sem ação comprovada.
A declaração da
Anvisa vem ao encontro com a de oncologistas que também afirmaram não haver
evidências científicas que comprovem que a droga cura o câncer. Isso porque a
substância sequer foi testada em humanos. "É fundamental que sejam feitos
estudos controlados em humanos para definir a eficiência, a dose ideal e a
segurança de um remédio antes de ele ser usado pela população, o que não
ocorreu na pesquisa com o composto de São Carlos", aponta Maria Del Pilar
Estevez Diz, coordenadora de oncologia clínica do Icesp (Instituto do Câncer de
São Paulo).
"Qualquer
fármaco que venha a ser usado em pessoas precisa passar por essas etapas. Essa
é uma questão fundamental. É no estudo clínico que se tem uma posição mais
clara de quais são os benefícios e quais são os riscos do medicamento",
explica a oncologista.
Para Gustavo
Fernandes, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, usar uma
droga que foi testada somente em animais (diga-se aqui, camundongos) é
"altamente perigoso" porque não se sabe sequer se pode melhorar ou
piorar a saúde de quem já está doente.
"É muito difícil
partir de dados pequenos em animais para uso populacional. É altamente
perigoso. Se a população usa essa droga e ela for deletéria, como a gente vai
saber? E vai comparar com o que?", questiona.
Butantan testa em células
humanas.
Outras pesquisas
feitas com a fosfoetanolamina no Instituto Butantan, em São Paulo, testam a
substância em tumores de células de mama, de fígado, do pâncreas e dos rins com
resultados promissores, segundo o biomédico Durvanei Maria, do laboratório de
Bioquímica e Biofísica do Instituto.
"Não tenho
dúvida que a fosfoetanolamina é eficaz. Ela impede a proliferação de células
tumorais, mecanismo conhecido como morte celular programada já que não destrói
as células normais, não altera o funcionamento de órgãos e do sistema
imunológico", diz o biomédico.
A maioria dos testes
ainda é feito em ratos e camundongos, mas células de humanos já estão sendo
testadas e apresentam resultados semelhantes, diz Maria. O objetivo agora,
segundo ele, é começar com os testes clínicos. Para isso, se juntou a um
grupo de cientistas que se mobilizou para regularizar o uso da droga na Anvisa
e nas comissões de ética médica. Diferentemente da USP, a equipe do biomédico não
produz cápsulas.
Trocar de tratamento é
perigoso.
O presidente da
Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica diz entender o
"desespero" de pessoas que não vêm mais resultados no tratamento
contra o câncer, mas qualquer médico só pode receitar medicamentos cuja
eficácia já tenha sido comprovada por determinação do Conselho Federal de
Medicina.
"Se houvesse
qualquer dado científico que dissesse que essa droga traria benefícios aos
humanos, eu poderia considerar o uso. Mas não há nada na literatura sobre isso,
então não posso recomendar. Posso dizer que vi alguns pacientes usarem, e não
tive percepção de benefício ou malefício, mas isso é uma percepção, não
Ciência, então não valida nada", diz.
Segundo a oncologia
clínica do Icesp, deixar o tratamento convencional para adotar o que
parece milagroso não é indicado porque pode alterar o resultado do tratamento
ou mesmo piorar a saúde já que faltam evidências de que a droga alternativa é
realmente eficaz.
"Tem que tomar
cuidado já que todas as intervenções podem ter riscos e efeitos colaterais,
inclusive as medicamentosas e até de produtos naturais que podem alterar o
metabolismo ou os efeitos do tratamento. Os pacientes que estão em tratamento
cuja indicação é clara, que temos a ideia do que pode ser esperado, seja de
benefícios e de eventos adversos, devem manter esse tratamento", afirma.
Há interferência da
indústria farmacêutica?
Os dois especialistas
não acreditam na hipótese levantada nos últimos dias de que a substância não é
usada em larga escala por interferência da indústria farmacêutica.
"A indústria
farmacêutica tem o objetivo de dar lucro e sempre que houver um produto
promissor ninguém é mais interessado do que ela. Não existe uma pílula mágica,
mas um conjunto de intervenções. Seria ótimo se tivéssemos um medicamento, mas
o mecanismo da doença é muito complexo, não é um lobby, é uma dificuldade da
Ciência em fazer isso, mas estamos progredindo muito nos últimos anos",
afirma Pilar.
Já para Fernandes não
há com crer que apenas uma medicação pode curar todos os tipos de câncer porque
os genes ativados podem ser diferentes em cada órgão. Da mesma forma que não
crê em teorias que acreditam que a cura é escondida porque a doença 'dá mais
lucro'. "Não acredito que quem teria a cura de uma doença que mata mais do
que guerra mundial esconderia isso por muito tempo. Se existisse, Hitler seria
uma pessoa bacana perto dessa ai", completa Fernandes.
Os pesquisadores da
USP São Carlos afirmaram que patentearam a substância para que ela não seja
usada pela indústria, que buscaria lucrar com ela. Também foi levantada a
hipótese de que as farmacêuticas estariam impedindo o teste em humanos,
junto à Anvisa. Mas, segundo o órgão, não há necessidade de intervenção
da indústria farmacêutica para a realização de estudos clínicos. Se uma
universidade tiver condições de fazê-lo, basta contatar a agência e
mostrar a documentação adequada. "A USP de São Carlos nos procurou para
dar detalhes sobre o processo, mas nunca fez o pedido para realizar os testes
clínicos, o que é diferente", informou a agência.
Se é ilegal, porque a
Justiça autoriza?
A pergunta que fica
é: por que a Justiça libera o uso se a lei comprova a ilegalidade?
A resposta está na
interpretação do juiz que pode optar pelo direito à saúde e à vida garantidos
na Constituição ou pela legalidade do ato, que em situações de vida ou morte
tende a ficar em segundo plano, explica o advogado do Instituto Oncoguia.
"Há duas
correntes de pensamento entre os juízes. Alguns entendem que havendo uma
prescrição, a expertise do médico dá crédito e o judiciário se posiciona a
favor. Contudo, há alguns que se posicionam com mais cautela e, por não ter
registro e prova de eficácia e segurança, não validam a decisão", explica.
No entanto, Matos crê
que a liberação de drogas sem registro e sem estudos clínicos pode "abrir
brechas perigosas para a sociedade".
"Isso é
temerário porque pode abrir brechas para situações além da fosfoetanolamina em
casos que podem beirar o charlatanismo, como dizer que chá de cogumelo é bom.
Isso pode ser muito perigoso para a sociedade", afirma.
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