FONTE: TRIBUNA DA BAHIA.
Com o problema da falta de espaço para novas
covas nos cemitérios públicos de Salvador, a cremação passou a ser uma
possibilidade de solução. Contudo, a população não tem aderido à nova (para os
baianos) técnica funerária. Das 720 cremações gratuitas oferecidas, por ano,
pela prefeitura, apenas nove foram utilizadas em 2012, e este ano o total não
deve ser muito maior, segundo a Secretaria Municipal de Ordem Pública. Qual
seria o motivo dessa rejeição? A Tribuna apurou que as crenças religiosas, como
se pode imaginar a princípio, não é a razão principal. “Acho que seja falta de
esclarecimento”, ponderou o padre Ângelo Magno. Atento à questão, ele disse
ainda que irá pedir a Dom Murilo Krieger que escreva sobre o assunto nos
jornais.
A ideia de um texto do arecebispo de
Salvador e primaz do Brasil sobre o tema veio como consequência da constatação
do padre Magno, pároco da Igreja de Sant’Ana do Rio Vermelho, sobre a
necessidade se desmistificar a cremação. “Não existe oposição da Igreja, não há
nenhum argumento teológico que condene a cremação. A ressurreição não depende
da existência de restos mortais. Muitos fiéis me questionam sobre esse assunto;
acho que realmente existe um senso comum ligado ao passado que dificulta a
incorporação da nova prática como algo normal”, disse.
A ligação com o passado destacado pelo padre
Magno é uma referência a um tempo em que a Igreja Católica era contrária à
cremação. “Mas como eu disse, não era por uma questão teológica, mas sim
pastoral. Ou seja, havia uma cultura, um senso comum, que a Igreja simplesmente
absorveu, mas com o passar do tempo, ela foi percebendo que haviam questões a
serem pensadas, como a falta de espaço e até mesmo questões de higiene”,
explicou.
O padre informa ainda que a Igreja Católica,
que, segundo dados de 2011 da Fundação Getúlio Vargas, responde por 74% dos
soteropolitanos que assumem seguir uma religião, não se pronunciou oficialmente
sobre o assunto, nem faz referência a ele nas pregações dos padres. Ele, no
entanto, acredita que, devido às imposições do momento, um esclarecimento aos
católicos sobre o assunto deva ser pensado pela Igreja. “Acho importante que
este tema esteja sendo debatido e acredito que a Igreja possa trabalhar mais
para esclarecer seus fiéis”, concluiu.
A falta de conhecimento sobre o assunto é
também para o pastor Roberto Amorim o maior motivo para a população de Salvador
rejeitar a cremação. Representante da Igreja Batista da Proclamação, associada
à Convenção Batista Brasileira, que reúne uma das denominações evangélicas com
maior número de fiéis no Brasil, ele afirma que não há proibição à prática.
“Não existe nenhum documento que condene a cremação. Para nós, é uma decisão
que está na esfera do indivíduo. Inclusive, conheço membros da nossa igreja que
já foram cremados”, conta.
Para o pastor, que exerce essa função há 30
anos, o problema da não aceitação está mais ligado à ausência de informações
sobre o assunto do que a questões ligadas à religiosidade. “Se trata mais de
uma ignorância, ou seja, uma falta de conhecimento”. Ele, no entanto, admite
que existem denominações entre as igrejas evangélicas que não admitem a
cremação como possibilidade, por entender que a Bíblia a condena. “Há quem
entenda a passagem que diz ‘viemos do pó e ao pó voltaremos’ como sendo uma
condenação à cremação. Eles entendem que a palavra pó significa terra”,
explica.
E é essa a justificativa dada pelo ajudante
de padeiro Silvio Luiz Mascarenhas para não admitir a cremação. Apesar de saber
da falta de espaços nos cemitérios da cidade, o membro da Igreja Batista
Pentecostal Redenção acredita que a cremação seja um erro. “Sigo o que está na
palavra e como ela é interpretada em nossa igreja. Para nós, se pudéssemos ser
cremados, a Bíblia não diria que voltaremos para o pó, mas sim para as cinzas”,
explica. Mascarenhas, no entanto, demonstrou de outra maneira que a falta de
informação sobre o assunto é inegável. “Não sabia que a prefeitura oferecia a
possibilidade de cremação gratuitamente”, disse.
Candomblé não faz objeção.
A prática não encontra objeção também no
Candomblé, outra importante religião em Salvador. E quem afirma isso é Mãe
Stella de Oxóssi, a líder de um dos mais importantes terreiros da capital
baiana, o Ilê Axé Opô Afonjá. “Pelo contrário, acreditamos que a relação com o
corpo acaba com a morte”, explica. Contudo, a iyalorixá admite que o povo do
axé tenha uma tendência a preferir enterrar seus mortos. “Mas se trata mais de
uma questão cultural do povo baiano. Temos esse costume”, disse.
E reforçando a ideia de que existe uma falta
de conhecimento sobre o assunto, Mãe Stella, que foi recentemente eleita membro
da Academia de Letras da Bahia, reconhece se tratar de um tema que necessita
ser debatido. “O povo de Axé está sempre aberto para o progresso. E nesse
assunto circula a energia dos bons costumes e da limpeza, pois sabemos que a
cremação é muito mais higiênica e responde bem à questão da falta de espaço nos
cemitérios. Acho que tudo é mutável, inclusive costumes como esse de enterrar
os mortos”, disse, acrescentando que vai passar a falar mais sobre o tema no
terreiro onde é líder.
“Uma questão de costume”.
Para o antropólogo Roberto Albergaria, até
mesmo uma campanha de esclarecimento sobre a cremação encontraria dificuldade
de ser absorvida pela população soteropolitana. “É uma questão de costume,
cultura, e isso não se muda da noite para o dia”, explica antes de ressaltar a
importância do enterro para a população mais pobre. “Um dos objetivos mais
importantes na vida das pessoas menos favorecidas é ter uma casa, e para eles a
cova é uma espécie de casa onde seus mortos podem ter a dignidade que muitas
vezes não tiveram em vida”.
Outro argumento do antropólogo está ligado
ao fato de a cremação gratuita ser realizada no cemitério Jardim da Saudade
(resultado de um acordo com a prefeitura). “É um local tipicamente de classe
média alta, ou seja, para o povo é uma ambiente de rico. O ritual do enterro
pressupõe um momento de catarse, onde os sentimentos devem vir à tona, mas num
ambiente como o Jardim da Saudade, é muito provável que a população mais pobre
se sinta deslocada para se comportar como lhe é de costume nesses momentos”,
pondera.
Maior divulgação da
técnica funerária.
A secretária de Ordem Pública, responsável
pela gestão dos cemitérios municipais, já sinalizou sobre a importância de
investir numa campanha de esclarecimento sobre a cremação. Segundo a secretária
Rosemma Maluf, a opção da técnica funerária tem sido apenas apresentada àqueles
que vão em busca de vagas nos cemitérios da cidade. Em um estado emocional
alterado devido à perda de um parente ou amigo, o requisitante tem naquele
momento um contato superficial sobre a possibilidade de cremar o ente querido
ao invés de enterrá-lo. “Precisamos fazer maior divulgação, mostrando as
vantagens da técnica”, admitiu a secretaria, que, segundo ela, já está
estudando como esse trabalho pode ser feito.
Não é só a população de baixa renda de
Salvador que não se acostumou ainda com a ideia de cremar seus entes queridos.
Pelo que informou a assessoria de imprensa do cemitério Jardim da Saudade, nem
mesmo a camada mais abastada da população soteropolitana aderiu à técnica
funerária. No mês de maio, foram apenas 15 cremações, um número além da média
mensal que fica entre 12 e 13.
A assessoria acredita que “questões
ideológicas” estão entre os principais motivos da pouca procura. Apesar de não
indicado pelos assessores do cemitério, o preço pode ser outro motivo da pouca
procura. O valor inicial é de R$ 5.250, que pode chegar a mais de R$ 7 mil, se
incluído o serviço funerário e a missa.
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