Que o uso de drogas ilícitas implica sérios riscos à
saúde, certamente não é novidade. Desde que a prática foi considerada questão
de saúde pública, campanhas preventivas buscam visibilizar os efeitos
devastadores dessas substâncias sobre o organismo dos usuários. No entanto, o
impacto sobre a saúde bucal raramente é discutido – muitas pessoas sequer
imaginam que o vício pode acarretar problemas como a perda de dentes e o câncer
de boca. A pouca atenção ao aspecto odontológico se reflete também no tratamento
da dependência química: faltam dentistas em boa parte das equipes de apoio, e
nem todos estão preparados para lidar com casos tão complexos.
O Escritório de Drogas e Crimes das Nações Unidas (UNODC,
na sigla em inglês) calcula que pouco mais de 5% da população mundial entre 15
e 64 anos consuma drogas ilícitas atualmente. Dentre os 246 milhões de usuários
estimados, 27 milhões fazem uso abusivo de entorpecentes. Embora algumas sejam
mais agressivas do que outras, todas as drogas são prejudiciais à saúde quando
usadas regularmente, até porque o hábito interfere na manutenção da higiene
pessoal. Existem malefícios comuns a diversas substâncias – o que, em termos de
saúde bucal, é o caso da xerostomia, que diminui o fluxo salivar e é um efeito
típico da cocaína, do crack, da maconha e do ecstasy.
"Quando [ela] acontece, o ambiente bucal se torna
mais ácido, o que aumenta a probabilidade de abrasões dentárias", explica
José Luiz Parizi (CROSP 23759), professor de patologia bucal e estomatologia da
Universidade do Oeste Paulista (Unoeste). O ressecamento também dificulta a
limpeza da cavidade oral, gerando mau hálito, acúmulo de placa bacteriana e
infecções. Por serem drogas que induzem ao consumo de doces, a maconha e o
ecstasy potencializam o surgimento de cáries, e a última piora o desgaste dos
dentes por causar bruxismo (mania de ranger os dentes) e apertamento da
mandíbula. Os sintomas podem persistir por até 24 horas e, em casos mais
graves, causar fraturas dentárias.
Cocaína e maconha estão entre as mais populares no Brasil.
Em 2015, o Relatório Mundial Sobre Drogas da UNODC
indicou que 1,75% da população adulta do Brasil é consumidora de cocaína. O
número parece baixo, mas é quatro vezes maior do que a média mundial (0,4%). A
cocaína e a heroína estão entre as drogas que mais rapidamente deterioram as
estruturas bucais quando inaladas ou aplicadas diretamente sobre a mucosa oral.
Ambas muito ácidas, elas constringem os vasos sanguíneos e dificultam a
irrigação dos tecidos, o que pode ocasionar necrose. Em alguns casos, a
aspiração das drogas pode perfurar o septo nasal em questão de semanas e afetar
também o palato duro (porção óssea do “céu da boca”), criando uma “ponte”
difícil de reverter com cirurgia.
Quando esfregadas nas gengivas, a cocaína e a heroína
causam problemas periodontais e a perda de dentes. Outro efeito importante é o
aumento da frequência cardíaca: a intervenção odontológica nesses usuários é
perigosa porque, se o dentista não estiver a par do vício, podem ocorrer
variações bruscas na pressão arterial. "Se o paciente receber anestesia
que contenha adrenalina [outra substância vasoconstrictora], há risco de parada
cardíaca ou respiratória", diz a periodontista Carla Andreotti Damante
(CROSP 66495), professora da Faculdade de Odontologia de Bauru (Universidade de
São Paulo).
Especialmente popular entre os jovens, a maconha também é
uma droga amplamente consumida no Brasil. Segundo Carla, além do efeito
xerostômico, há evidências de que ela interfira na resposta a cirurgias,
dificultando a cicatrização de implantes. A exemplo do cigarro, todas as drogas
fumadas podem provocar queimaduras na mucosa oral, candidíase e lesões
pré-cancerígenas, como as leucoplasias.
Assistência aos usuários deve ser multiprofissional.
Os tratamentos oferecidos pelos Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS) e alguns serviços privados no país se centram, por via de
regra, na saúde mental dos dependentes químicos. No entanto, a reabilitação
oral é muitas vezes uma etapa importante da reconstrução da autoestima e,
consequentemente, da superação do vício. O processo é delicado e envolve um
trabalho de sensibilização. "A primeira dificuldade é tirar a verdade do
paciente. Sem ter essa informação, o diagnóstico dos problemas bucais é mais
complicado", afirma Carla.
Como os usuários de drogas normalmente escondem o hábito
dos dentistas, cabe ao profissional reconhecer os sintomas da dependência
química. Geralmente, há destruição localizada das estruturas bucais e lesões
muito avançadas para a idade do paciente ou o tempo de evolução do problema.
Não é raro que, uma vez descoberto o vício, o paciente desista do tratamento.
"É fundamental a interação entre a equipe multiprofissional e a família. O
tratamento integral minimiza os efeitos deixados pelo uso de drogas",
explica Luiz Felipe Scabar (CROSP 72423), professor de saúde pública da
Faculdade de Odontologia da Universidade Paulista (Unip). O trabalho multidisciplinar,
além de contribuir para a capacitação psicológica dos dentistas, transforma o
contexto geral do paciente e reduz as chances de reincidência.
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