Há 76 milhões de assexuais no mundo. No Brasil, 2
milhões. Isso significa que 1% da população mundial não tem interesse sexual
por qualquer pessoa, homem ou mulher, segundo a Organização das Nações Unidas
(ONU), em números de 2017. Para falar sobre um assunto tão ou mais
controvertido que a transexualidade ou a bissexualidade, conversei com
Elisabete Baptista de Oliveira, mestre e doutora em Educação pela Faculdade de
Educação da USP e, principalmente, pesquisadora nas áreas de relações de
gênero, sexualidade e diversidade sexual. Elisabete mergulhou numa densa e
inédita pesquisa com 40 assexuais, de adolescentes a idosos, para a tese de
doutorado “Minha Vida de Ameba”. Ameba é a forma como alguns assexuais se
identificam em seus fóruns. Paulista, 54 anos, divorciada, ela explica quem
são, como vivem e como se relacionam aqueles que não “pensam” em sexo.
JLV – É possível viver
tranquilamente sem sexo e/ou sem amor?
Elisabete – As pessoas autoidenficadas como
assexuais que eu entrevistei na minha pesquisa mostram que são perfeitamente
capazes de viver felizes sem sexo, sendo que algumas são felizes também sem o
amor romântico. Essa pesquisa me mostrou que a atividade sexual ocupa
diferentes lugares nas vidas as pessoas. Para algumas, é muito importante,
indispensável. Para outras, é totalmente desnecessária. Para outras, ainda,
pode ter alguma importância em determinados contextos de relacionamento.
Portanto, diferentes graus de interesse sexual fazem parte da diversidade
humana.
JLV – Os assexuais acreditam que
há uma pressão social para que as pessoas tenham interesse sexual por alguém?
Elisabete – Sim. Em minha pesquisa, quase
todos os entrevistados revelaram sentir pressão social para o engajamento em relacionamentos
afetivo-sexuais. Os homens entrevistados revelaram bastante ansiedade por
saberem que as masculinidades mais valorizadas socialmente são aquelas que
idealizam o “macho pegador”, aquele que está sempre em busca de sexo, que não
perde nenhuma oportunidade de transar. Já as mulheres sofrem pressão por
relacionamentos amorosos, casamento e filhos. Algumas entrevistadas me contaram
que sentem que suas conquistas profissionais, educacionais e materiais não são
valorizadas, pois a expectativa da família e dos amigos é de que elas se casem
e tenham filhos. Tanto as mulheres como os homens me disseram que algumas
pessoas de seu círculo social pensam que elas e eles são homossexuais. É mais
fácil classificá-los como homossexuais do que entender que pode existir outra
orientação sexual que não seja heterossexual ou homossexual ou bissexual. A
atração sexual compulsória está na base das orientações sexuais conhecidas,
mesmo que elas não sejam aceitas socialmente.
JLV – Há uma expectativa maior
que os homens sejam sexualmente ativos e viris?
Elisabete – Sim, sem dúvida. Esse foi um dos
problemas mais apontados pelos homens que entrevistei na pesquisa. O modelo de
masculinidade mais valorizado é o do homem que jamais perde uma oportunidade de
fazer sexo. Aqueles que não se identificam com esta masculinidade são
percebidos como perdedores, fracassados ou como homossexuais, mesmo que não
sejam. As masculinidades assexuais devem ser investigadas para que tenhamos um
quadro mais claro dos significados de ser homem no contexto assexual.
JLV – O relacionamento amoroso
está no centro da nossa vida?
Elisabete – Acredito que os relacionamentos
afetivo-sexuais estejam no centro de nossas experiências sociais. Quando um par
amoroso se forma, seus outros relacionamentos (como família de origem e amigos)
ficam para um segundo plano. No caso dos casamentos, essa união torna-se mais
importante para os cônjuges do que seus outros relacionamentos sociais.
JLV – A escolha da vestimenta é
uma maneira de se sexualizar, então eles tendem a neutralizar isso?
Elisabete – Algumas mulheres assexuais que
eu entrevistei me disseram que sempre tomaram muito cuidado com seu modo de se
vestir, por não quererem ser vistas como objeto sexual pelos homens em seus
círculos de relacionamentos. Mas isso não adiantava muito. Nenhum homem, porém,
revelou cuidados especiais com a vestimenta.
JLV – Assexuais podem ser
considerados misantropos, ou seja, aquele que prefere a solidão, não tem vida
social, não gosta da convivência com outras pessoas?
Elisabete – Não, isso não foi revelado por
nenhum dos meus entrevistados. A maioria adora a convivência social com família
e amigos, muitos gostam de namorar, de se relacionar, ir às baladas, ao cinema.
Mas também existem outros que preferem uma vida mais pacata, mais íntima, mas
isso não quer dizer que sejam antissociais.
JLV – Há chance de dois assexuais
se apaixonarem?
Elisabete – Sim, a grande maioria os
assexuais se apaixona como qualquer outra pessoa. Parcerias amorosas são
desejadas por muitos/as assexuais, seja com pessoas de outro sexo, do mesmo
sexo, de qualquer dos sexos, ou independente de sexo e gênero. Também pode
acontecer paixão por outra pessoa assexual. Quase todos os meus entrevistados
me disseram que gostariam de uma parceria amorosa assexual, mas não acreditam
que encontrarão a pessoa certa que seja como eles. Todos aqueles que estavam em
relacionamento amoroso na época da entrevista estavam namorando ou casados com
alguém não assexual. Esse é o tipo de parceria mais frequente, e também a mais difícil
para ambas as partes, pois implica em muitas negociações.
JLV – A assexualidade é resultado
de algum trauma?
Elisabete – Não acredito que nenhuma
orientação sexual seja resultado de trauma, nem a heterossexualidade. Nenhum
dos meus entrevistados revelou qualquer situação de trauma sexual que possa
justificar seu desinteresse por sexo, muito pelo contrário, faziam questão de
me dizer que nada nesse sentido tinha acontecido com eles/as. Não podemos nos
esquecer de que existe muita gente que passou por trauma sexual, seja abuso ou
estupro, e não perdeu o interesse por sexo. É impossível estabelecer uma
relação de causa e efeito entre experiências traumáticas e orientação sexual.
JLV – Como a assexualidade é uma
expressão de comportamento muito recente, tem a ver com a explosão da
pornografia em todos os meios de comunicação? Na hora de abundância de recursos
e informações há necessidade de criar limites internos?
Elisabete – É possível que a emergência do
conceito de assexualidade tenha, sim, relação com os excessos das
representações do sexo na sociedade. É possível que seja uma reação aos
excessos. A assexualidade não é recente. O que é recente é o surgimento do
conceito e da discussão sobre a assexualidade. Com certeza sempre existiram
pessoas desinteressadas por sexo ao longo da História, mas antes não havia um
nome para isso, não havia uma classificação, nem havia possibilidade de
congregação dessas pessoas, ou seja, de elas saberem que existem outras como
elas. Foi a internet que possibilitou isso.
JLV – Costuma-se dizer que não
existe ex-gay. Existe ex-assexual?
Elisabete – Não conheço, não aconteceu com
nenhum dos meus entrevistados na pesquisa.
JLV – Eles chegam a casar ou ter
filhos? Como isso é possível?
Elisabete – Não há nada errado com o corpo
da pessoa assexual. Ela pode fazer sexo, casar, ter filhos como qualquer outra
pessoa. Entre meus entrevistados, pelo menos cinco tinham filhos.
JLV – Eles são diferentes de
abstêmios ou celibatários?
Elisabete – Assexuais são pessoas que não
sentem atração sexual, porém isso não as impede de fazer sexo. Alguns são
celibatários, ou seja, decidem não se envolver sexualmente com ninguém. Outros,
porém, podem se envolver sexualmente e, mesmo assim, isso não entra em conflito
com sua autoidentificação como assexual. Celibato é uma
escolha por abstinência sexual. Assexualidade é uma orientação sexual, o indivíduo não escolhe.
escolha por abstinência sexual. Assexualidade é uma orientação sexual, o indivíduo não escolhe.
JLV – Desejo não implica em
atração?
Elisabete – Se pensarmos o desejo como
libido, ele pode ser resolvido somente com a masturbação. A atração é o desejo
direcionado para outra pessoa. Isso, os assexuais não sentem.
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