A classe média brasileira, em regra, coloca-se, simultaneamente, na
condição de heroína e vítima em relação aos problemas enfrentados pelo país. Em
sua avaliação, exerce as profissões mais relevantes da sociedade, empreende,
paga, proporcionalmente, mais impostos que as demais classes e, como
contrapartida, não tem nenhum serviço importante provido pelo governo. Gasta
com escolas particulares e planos de saúde, não tem segurança e reclama,
coberta de razão, da incipiência da infraestrutura e da má qualidade do
transporte público.
Vê o sistema como distorcido e perverso, mostrando-se indignada e crítica em relação à realidade enfrentada. Observando-se, no entanto, o alvo da sua indignação, deixa transparecer seletividade e enviesamento. Senão vejamos:
Vê o sistema como distorcido e perverso, mostrando-se indignada e crítica em relação à realidade enfrentada. Observando-se, no entanto, o alvo da sua indignação, deixa transparecer seletividade e enviesamento. Senão vejamos:
1) O lojista que
possui o seu empreendimento em um dos enormes shopping-centers espalhados pelo
país queixa-se das margens de lucro reduzidas, mas, quando persegue ampliá-las,
reivindica a redução dos direitos trabalhistas dos seus funcionários, sem se
voltar contra os volumosos custos de ocupação cobrados pelos shoppings, os
quais, muitas vezes, superam 50% do lucro agregado;
2) Como
contribuintes, clamam contra os R$ 30 bilhões anuais destinados ao Programa
Bolsa Família, mas não mostram qualquer indignação com as centenas de bilhões
de reais de frustração de receita, devida ao perdão fiscal concedido às grandes
empresas e ao setor rural do país, o qual, no ano corrente, supera os
orçamentos conjuntos da saúde e da educação;
3)
Concebem a regularização fundiária e as desapropriações destinadas à promoção
da reforma agrária como medidas absurdas, mas dão de ombros para a recente
legalização da grilagem de terras públicas concedida pela Câmara;
4)
Evocam a inexorabilidade da reforma previdenciária, justificando-se pelo
déficit anual de R$ 150 bilhões do seguro social, os quais beneficiam 30
milhões de segurados, mas são insensíveis ao indesejável título de campeão
mundial de juros e os mais de R$ 400 bilhões desembolsados pelo país para
pagamento de despesas com essa rubrica, apenas em 2016, os quais beneficiam,
tão somente, um número reduzido de rentistas.
A
contraposição entre o justo sentimento de desconforto experimentado pela classe
média brasileira e a forma como costuma manifestar o seu desalento permitem evocar
a imagem de um alpinista solitário e amedrontado com a possibilidade de uma
eminente avalanche, mas que não consegue desgrudar os olhos do sopé da
montanha. Incapaz de reconhecer a base da rocha tão somente como destino
indesejável, a toma como a própria ameaça, despercebendo e ignorando a
subjugação da avalanche pela absoluta incapacidade de erguer a cabeça.
*** Horacio Nelson Hastenreiter Filho é professor e diretor
da Escola de Administração da Ufba.
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