FONTE:, Letícia Mori - Da BBC Brasil em São Paulo, Da BBC Brasil, em São Paulo, (http://noticias.uol.com.br).
Magros e com ar
abatido, eles perambulam pelas ruas, com isqueiro na mão, comprando drogas para
aplacar sua crise de abstinência. O cenário pode lembrar o de usuários de
crack, que se espalham pelas capitais brasileiras, mas nesse caso retratam uma
outra realidade: a do uso de heroína e opioides nos Estados Unidos e na Europa.
Os Estados Unidos
acabaram de declarar uma epidemia de opioides - drogas derivadas do ópio, como
a heroína, a morfina e a metadona - como uma emergência de saúde pública.
"Nunca vimos algo como o que tem acontecido nos últimos quatro anos",
disse o presidente Donald Trump na quinta.
Na Inglaterra, no
país de Gales e na Escócia, o número de mortes por overdose de heroína dobrou
nos últimos cinco anos - e é hoje o maior por ano desde que o governo começou a
medir.
Nos EUA, um
levantamento do governo federal divulgado em setembro apontou que o número de
mortes causadas por fentanil, um anestésico e analgésico opioide de acesso
restrito, aumentou 540% em três anos - foi de 3 mil, em 2014, para 20 mil, em
2017.
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milhões de brasileiros
O relatório mostra
que a epidemia atinge diferentes partes do país. A presença constante do vício
em opiáceos sobrecarrega governos estaduais, que precisam deslocar cada vez
mais recursos para remediar o problema.
A explosão no uso
dessas substâncias, no entanto, não chegou ao Brasil. Aqui o problema é outro.
O último Levantamento
Nacional de Álcool e Drogas disponível, feito em 2012 pela Unifesp, apontava
que 1,8 milhão de pessoas já haviam experimentado crack no país, enquanto a
cocaína havia sido usada por 5,6 milhões. Já a Pesquisa Nacional sobre o Crack
feita pela Fiocruz em 2013 revelou que havia cerca de 370 mil usuários
regulares de crack nas capitais.
Nenhum dos
levantamentos aponta presença relevante de heroína. O estudo feito pela Unifesp
nem cita a droga. E só 0,84 dos usuários de crack já experimentaram heroína e
outros opioides, de acordo com a pesquisa da Fiocruz.
"A heroína tem
prevalência muito baixa independentemente do estrato social - em diferentes
classes sociais, gêneros, idade, formação", explica o pesquisador
Francisco Inácio Bastos, principal especialista em drogas da Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) e coordenador do estudo sobre o crack.
Como conseguimos escapar ilesos desse problema?
Veteranos de guerra.
A heroína é derivada
do ópio - droga originária da Ásia que já era conhecida na Europa há milênios
quando um tratado proibiu sua comercialização, em 1912.
Produzida através da
mesma planta, a papoula, a heroína foi sintetizada pela primeira vez pelo
químico britânico Charles Romley Alder Wright, no fim do século 19.
Foi distribuída como
remédio para dor pela empresa farmacêutica Bayer durante mais de uma década nos
Estados Unidos e na Europa, até relatos de que a substância era viciante
levaram também à sua proibição, nos anos 1910.
A partir daí, ela
continuou a ser produzida ilegalmente e se tornou um problema na Europa.
Já nos EUA, o grande
mercado para a heroína se formou nos anos 1970, segundo Guaracy Mingardi,
especialista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ex-subsecretário
nacional de segurança pública.
"Os soldados que
lutaram na Guerra do Vietnã (1955-1975) começaram a voltar viciados. Eles
também tinham conhecido e criado relacionamentos com os traficantes, o que
ajudou a disseminar a droga", afirma.
No Brasil, nunca se
criou essa demanda, segundo Mingardi. Ele explica que o tráfico muitas vezes se
utiliza das rotas comerciais existentes - e o menor número de rotas entre
Brasil e Ásia nesse período ajudou a inibir a disseminação da droga.
Muito longe da Ásia e
das rotas de distribuição, o Brasil acaba recebendo heroína muito raramente - e
a preços muito mais altos.
A estimativa dos
especialistas é que a droga esteja custando U$ 150 (R$ 450) por 1g. Como
comparação, uma pedra de crack custa em torno de R$ 10 na cracolândia
paulistana.
"A questão do
preço e da distribuição é muito importante. No caso da cocaína, por exemplo,
estamos ao lado dos maiores produtores do mundo. Mesmo assim, a maior parte da
cocaína consumida aqui, por exemplo, vem da Bolívia, porque a colombiana é mais
cara e costuma ir para os EUA e a Europa", afirma ele.
O crime organizado
brasileiro também não parece ter estratégias ou escala de distribuição de
opioides.
"Pelos poucos
registros de uso de heroína aqui é possível perceber que a droga não vem
através do tráfico comum, dos mesmos distribuidores que vendem maconha, cocaína
e crack", afirma Mingardi.
O médico Francisco
Inácio Bastos, da Fiocruz, concorda com essa avaliação: "Não existe
distribuição sistemática, é um ou outro estrangeiro que traz um pouco para
cá".
Efeito colateral.
Outro fator a ser
levado em conta é que os brasileiros não têm um alto consumo de remédios
anestésicos como os americanos, explica Bastos.
"Eles têm
costume maior de consumir anestésicos e analgésicos por uma série de motivos: o
país é mais rico, a população tem uma sobrevida maior em relação à doenças crônicas
e reumáticas, o acesso é maior", diz o pesquisador.
Segundo ele, o hábito
de consumir opioides legais acaba levando muitas pessoas ao vício. "Muitos
remédios que são receitados acabam gerando um vício. As pessoas ficam
dependentes de (substâncias opioides como) fentanil, metadona e oxicodona.
Depois que a quantidade receitada acaba, na dificuldade de conseguir as drogas
- vendidas só com prescrição médica - a pessoa acaba comprando heroína na rua,
porque ela tem efeitos parecidos", diz Bastos.
Em 2015, um terço dos
americanos recebeu prescrição para usar esse tipo de medicamento, segundo dados
do governo federal dos EUA.
Outra explicação
possível para a menor incidência de heroína no Brasil é que os maleficíos da
droga foram muito divulgados em campanhas contra o seu uso - principalmente a
partir dos anos 1980, quando houve um pico de consumo no mundo.
A validade dessa
tese, no entanto, é questionável se considerada a quantidade de publicidade
negativa feita sobre o crack e o fato de que o uso dessa droga apenas se
intensificou desde os anos 1990.
A heroína é uma droga
depressora. Gera uma sensação de euforia intensa seguida por um período de
sedação, e é rapidamente viciante. Usada continuamente, causa insônia,
disfunção sexual, enfraquecimento do sistema imunológico e pode desencadear
doenças psicólogicas e lesões cerebrais.
Conforme o corpo se
acostuma com a substância, necessita de doses cada vez maiores para obter a
mesma sensação - por isso a droga tem um alto índice de overdose.
"As classes baixas
consomem o crack, que é mais barato. Nas classes médias, que teriam poder
aquisitivo para consumir o produto, a reputação da droga pode ter um papel em
suprimir o uso", diz Bastos.
"É um círculo
virtuoso - não existe demanda, então os traficantes não trazem. E como não
existe distribuição, as pessoas não viciam", diz. "Um problema a
menos para a gente se preocupar."
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