Os relatos de mulheres vítimas do "golpe da
camisinha", quando o parceiro remove o preservativo durante a relação
sexual sem consentimento, estão aparecendo com frequência cada vez maior. Esse
novo tipo de violência sexual tem gerado campanhas mundo afora --o ato é
conhecido como "stealthing" ("dissimulação", em tradução
livre para o português). Veja, abaixo, o relato da universitária R. T., 25
anos, que passou por essa situação. Ela ficou tão traumatizada que, desde
então, não conseguiu ter mais nenhum parceiro.
"Sou mãe solteira e não tenho namorado.
Costumava procurar parceiros em um aplicativo de paquera e foi lá que
reencontrei um conhecido, o Eduardo*, filho de
uma amiga da minha mãe. No passado, tínhamos muita afinidade, conversávamos
bastante, mas a vida acabou nos desencontrando. Eu era noiva e tive um filho,
ele acabou casando e depois se separando. Começamos a nos falar pelo aplicativo
e combinamos de sair.
Nos dois primeiros encontros, saímos para jantar.
No terceiro, decidi ir para a casa dele e ver o que rolava. Até, então, o
Eduardo me parecia um cara legal, não demonstrou nenhum comportamento machista.
Na segunda vez que nos encontramos, trocamos carícias mais intensas no carro e
a todo momento ele me perguntava se eu estava confortável com a situação. Nunca
houve nada estranho.
Na casa dele, quando o clima começou a esquentar,
peguei a camisinha que tinha levado e pedi que colocasse. Sempre faço questão
que meus parceiros usem camisinha e, além disso, tenho um DIU hormonal, mas ele
está fora de lugar. Mais um motivo para usar o preservativo e eu havia contado
isso ao Eduardo.
Ele ficou relutando para usar. Dizia que não era
preciso camisinha, pois além de impedi-lo de gozar e incomodar, ele não tinha
qualquer doença para transmitir para mim. Mas fui firme, disse que se não
colocasse, ia embora para casa.
O Eduardo, então, pegou a camisinha e colocou. Tudo
ia bem, mas, sem que eu percebesse, ele tirou a camisinha durante a transa. Só
percebi quando ele gozou. Fiquei paralisada na cama e ele agiu como se nada
tivesse acontecido.
Na hora, não pensei em dizer nada. Mas me deu uma sensação
ruim e eu quis sair dali. Levantei, vesti minha roupa e ele ainda veio me
perguntar por que eu já estava indo. Só respondi 'porque eu não sou obrigada' e
sai. Em momento algum o Eduardo tentou entender o que tinha feito de errado e
depois ainda veio puxar papo comigo como se nada tivesse acontecido. Preferi
não falar nada para não me desgastar ainda mais. Não acho que ele vá mudar esse
comportamento escroto só por algo que eu diga.
Para piorar, minha menstruação atrasou no mês
seguinte. Fiz um exame de sangue para checar se estava grávida, mas deu
negativo.
Fiquei tão arrasada e me senti tão desrespeitada,
que não consegui ter mais nenhum parceiro desde então. Faz três meses que não
transo. Me sinto totalmente frígida depois desse episódio. Talvez por falta de
confiança nos homens, não sei...
Eu já estava fazendo terapia antes de isso
acontecer. Sofri muito com meu ex, pai do meu filho. Ele era agressivo e, antes
de nos separarmos, na última briga, chegou a levantar a mão para me bater. O
psicólogo tem me ajudado a lidar com isso, mas ainda é difícil.
Esse episódio com o Eduardo fez com que eu me
sentisse invadida e só piorou as coisas. Eu estava transando com ele com
consentimento. Mas não daquela maneira, não sem o preservativo. Li sobre o
'stealthing', ele tem sido discutido em alguns grupos do Facebook que participo
e vejo algumas posturas machistas sobre isso. Até mulheres fazem comentários
culpando a vítima. Dizem que isso só acontece com quem faz sexo casual, por
exemplo. Não foi meu caso!
Acho que as pessoas ainda têm esse tipo de
pensamento porque fomos criadas achando que os homens tem direito e podem de
fazer tudo com nós, mulheres. Quem pensa assim, provavelmente, deve ser vítima
de vários abusos sem nem perceber e tudo isso por que fomos criadas para achar
que isso é normal, quando não é!"
Homens podem ser punidos pelo
"golpe da camisinha".
O golpe da camisinha pode não ser considerada
estupro, pois a definição desse crime no Código Penal é "constranger
alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".
No entanto, de acordo com Teresa Cristina Cabral
Santana Rodrigues dos Santos, integrante da Comesp (Coordenadoria Estadual da
Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do
Estado de São Paulo), tirar a camisinha durante a transa sem que a parceira
saiba é crime. O ato se encaixa na legislação como "violência sexual
mediante fraude", crime previsto no artigo 215 do Código Penal brasileiro,
que consiste em "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com
alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre
manifestação de vontade da vítima". A pena vai de dois a seis anos de
prisão.
Como a retirada do preservativo durante a relação
sexual aumenta o risco da transmissão de doenças sexualmente transmissíveis,
Teresa explica que também é possível que essa conduta se enquadre no artigo
132, que consiste em expor a vida ou a saúde de outra pessoa a perigo direto ou
iminente. A pena é detenção de três meses a um ano.
As penas, segundo a integrante da Comesp, não são
altas e, dificilmente, o homem ficaria em uma instituição prisional pelo
"stealthing". "Mas a responsabilização criminal é importante,
independentemente de qualquer coisa. O réu perderia sua primariedade, quando
fosse procurar emprego, o dado ficaria exposto, fora o constrangimento que é
passar por um processo penal. Uma condenação não se limita ao fato de ser preso
ou não".
Caso você seja uma vítima, a indicação de Teresa é
buscar uma delegacia da Mulher para prestar queixa e fazer um boletim de
ocorrência. "Se essa prática resultar em uma situação mais complicada,
como uma gravidez indesejada, cabe uma ação cível com um pedido de indenização,
pois foi um ato sem consentimento", fala.
* Nome foi trocado a pedido da entrevistada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário