Milhões de pessoas em
todo o mundo estão abrindo mão do glúten. O jornalista da BBC William Kremer é
um deles. Ele tem suas razões para ter deixado de comprar pão e bolos
tradicionais. Mas ele não tem certeza do porquê de tantas pessoas estarem
cortando esse alimento de suas dietas, como ele pondera abaixo:
É assim que você se
livra do glúten na sua vida. Primeiro, tire todo os pães, farinhas e cereais
matinais de trigo do seu café da manhã. Em seguida, jogue fora todos os potes
de manteiga ou geleia que estavam aberto, porque pode ter migalhas de pão ou
bolacha neles.
Além disso, chame
seus amigos para acabar com todas as cervejas que você tenha em casa.Milhões de
pessoas estão fazendo isso e muito mais à medida que estão convertendo seus
corpos em áreas livres de glúten.
Apenas nos Estados
Unidos, cerca de 70 milhões de pessoas - ou 29% da população adulta - garante
que está tentando cortar o consumo de glúten, de acordo com um levantamento
divulgado pela empresa de pesquisas NDP.
Já no Reino Unido,
60% dos adultos já compraram um produto sem glúten, de acordo com dados do site
de pesquisas YouGov, e em 10% dos lares há alguém que acredita que glúten faz
mal para a saúde.
Foi assim que a minha
casa passou a fazer parte desses 2,6 milhões de lares.
Em fevereiro, o meu
filho Sam, de 21 meses, contraiu o que parecia ser um vírus. Eu e minha mulher
nos revezamos para lidar com o vômito e a diarreia, na expectativa de que tudo
fosse melhorar em alguns dias.
Mas semanas se
passaram e isso não aconteceu. Sam começou a perder peso. No banho, podíamos
ver suas costelas em cima da barriga, que estava inchada como um balão.
Ele parou de andar e
não conseguia mais ficar de pé - sua personalidade animada começou a
desaparecer. Ele gritava com estranhos e se recusava a nos olhar nos olhos. Dia
e noite, nossa casa estava imersa em canções de ninar de vídeos do YouTube - a
única coisa que parecia animar Sam.
Um dia, na área de emergência
de um hospital, um pediatra mencionou pela primeira vez algo que eu nunca tinha
ouvido falar: doença celíaca. Um exame de sangue e uma biópsia confirmaram que
meu filho tinha essa doença autoimune que é causada pelo glúten, um conjunto de
proteínas.
O glúten pode ser
encontrado no trigo e proteínas muito semelhantes estão presentes na cevada e
no centeio. Segundo os médicos nos disseram, até mesmo uma migalha de pão pode
desencadear os sintomas de Sam.
Dificuldades para
processar o glúten.
Vou dizer isso do
melhor jeito possível, mas o Sam é um retrocesso evolucionário. Volte no tempo
10 mil anos e todo mundo estava numa dieta sem glúten. E então eles começaram a
cultivar a terra: uma revolução agrária que deu à nossa espécie tempo livro
para construir civilizações e desenvolver cultura e tecnologia.
Os seres humanos têm
muito a agradecer ao glúten. Ele transforma o pão em um produto mais suave ao
fazer com que a massa cresça durante a cocção.
Mas ele é a única das
proteínas que não pode ser decomposta totalmente pelo corpo humano e
transformada em aminoácidos.
O máximo que
conseguimos fazer é dividi-lo em cadeias de ácidos chamados peptídios.
Eles normalmente
passam pelo corpo da maioria das pessoas. No entanto, os sistemas imunológicos
de celíacos (pessoas que sofrem do transtorno) são geneticamente predispostos a
vê-los como micróbios invasores.
Uma guerra começa e
há vários efeitos colaterais: uma redução das vilosidades intestinais, dobras
que cobrem o intestino delgado e são responsáveis por absorver os nutrientes e
levá-los até o fluxo sanguíneo.
À medida que se
atrofiam, sua superfície diminui e não faz seu trabalho como deveria.
Dieta em moda.
A doença celíaca é
bem comum. Ela afeta cerca de 1% das pessoas do mundo desenvolvido, de onde se tem
dados.
Mesmo com essa
abrangência, isso não explica a crescente popularidade da dieta sem glúten.
Segundo a empresa de
análise de mercado Mintel, 7% dos adultos britânicos evitam o glúten por conta
de alergia ou intolerância (estritamente falando, a doença celíaca não é nem
uma coisa nem outra) e mais de 8% o evitam por conta de um "estilo de vida
saudável".
A opinião de que o
glúten faz mal não apenas para celíacos mas para todo mundo é apoiada por uma
corrente de blogueiros, nutricionistas que vendem best sellers e famosos.
Um levantamento da
Mintel estima em US$ 9 bilhões o mercado americano de produtos sem glúten.
Uma análise nas
buscas online nos últimos anos sugere que o aumento do interesse nas dietas sem
glúten tem pouco a ver com uma crescente consciência sobre o celíaco e está
muito mais relacionado à popularidade de dietas como a "paleo", que
busca um retorno à Idade da Pedra no que se refere a hábitos alimentares.
Mas muitos acabaram
se interessando pelo conceito de abrir mão do glúten pela simples razão de
acreditarem que isso as fará se sentir melhor, pelo que percebi nas conversas
com visitantes de uma feira de alimentação em Londres, a Allergy and Free From
exhibition, dedicada a alimentos que causam alergia e dietas alternativas como
vegetariana e vegana.
Muitos dos 35 mil
visitantes buscavam informações ou produtos ligados a dietas particulares
específicas. Mas, como me disse o diretor do evento, Tom Treverton, é cada vez
mais comum achar pessoas "que querem cortar algo de sua dieta por outra
razão - não porque são alérgicas, mas porque se sentem melhor quando o fazem, e
acreditam que isso seja saudável".
Muitas das pessoas
com quem conversei tinham preocupações genuínas com a saúde. Encontrei celíacos
que estavam ali em busca de um pão ou uma cerveja (sem glúten) decentes, mas
falei com um número ainda maior de pessoas que se descreveram como
"intolerantes a glúten".
Elizabeth Jones, por
exemplo, me contou que começou a sofrer de intolerância a glúten aos 15 anos.
"É muito constrangedor aparecer em um evento social com os lábios ou a
cara inchada", disse ela.
Ela cortou glúten e
outros alimentos de sua dieta - a lista incluía sementes de uva - o que pareceu
ter aliviado os sintomas.
Outra mulher, Debra,
de Hertfordshire, costumava sofrer de refluxo gástrico. Ela foi testou negativo
para doença celíaca, mas um nutricionista do hospital recomendou que ela
cortasse glúten de sua dieta mesmo assim.
Ela é enfermeira
especializada em gastroenterologia pediátrica e me disse que sua situação
melhorou; ela disse também que entre seus pacientes havia várias crianças que
não apresentavam danos nas vilosidades intestinais - e que, portanto, também
não sofriam de doença celíaca - mas que, como ela, tiveram uma melhora em sua
condição quando pararam de comer glúten.
Médicos especialistas
acreditam que é hora de ampliar o espectro do que são considerados problemas
causados pelo glúten, que abarcaria desde a doença celíaca como também a
sensibilidade ao glúten.
O médico italiano
Alessio Fasano, diretor do Centro de Pesquisas Celíacas nos Estados Unidos, é
um grande defensor dessa visão.
Em 1993, ele assumiu
o departamento de gastroenterologia pediátrica na Universidade de Medicina de
Maryland. Ele era um médico jovem vindo de Nápoles, onde ele atendia ao menos 20
ou 30 crianças por semana com doença celíaca.
Mas nos Estados
Unidos, a história era outra: "Passavam-se dias, semanas, meses e eu não
atendia nenhum caso sequer." Depois, ele percebeu que o problema era uma
questão de diagnóstico mal feito.
Mesmo diante do
ceticismo de seus colegas, ele fez um estudo com 13 mil pessoas que o ajudou a
mudar os dados: a prevalência de um celíaco para 10 mil pessoas passou de um
para cada 133.
Sua clínica agora
atende mais de mil pacientes por ano.
Diferentemente de
alergia ao trigo, a sensibilidade ao glúten não tem uma série de biomarcadores
conhecidos e, por isso, os médicos não podem saber se o paciente sofre desse
problema com um simples teste - há um exame de sangue, mas os resultados são
imprecisos para muitos pacientes.
Assim, essa doença só
pode ser diagnosticada ao se eliminar outros problemas e, em seguida, testar
uma dieta sem glúten.
Mas, para Fasano,
ainda que o glúten não tenha valor nutricional em si, fazer uma mudança radical
no que se come sem a ajuda de um especialista é péssima ideia.
"Deixar de
ingerir glúten te priva de muitos elementos-chave em sua dieta, como vitaminas
e fibras, fundamentais para uma nutrição equilibrada."
Perder peso?
Parte da polêmica em
torno do glúten vem da dificuldade de se distinguir os benefícios que qualquer
um pode experimentar ao adotar uma dieta sem glúten com efeito placebo (o poder
das expectativas do paciente de que o tratamento levará à cura).
Outra parte dessa
questão controversa vem do fato de não se saber exatamente quantas pessoas são
afetadas.
Fasano calcula que o
número pode estar em até 6% da população. Mas com 29% dos americanos adultos
tentando evitar glúten, há 22% (ou 53 milhões de pessoas) que não estão no
espectro de doenças relacionadas ao glúten, mas ainda sim querem deixar de
ingeri-lo.
Apenas em 2013, 200
milhões de pratos sem glúten foram pedidos em restaurantes americanos, segundo
a NPD.
"Estamos
quebrando a cabeça para entender esse fenômeno social. Começamos essa batalha,
por assim dizer, para sensibilizar os americanos sobre os celíacos. Mas nos
demos conta que esse pêndulo está descontrolado e agora foi par ao outro
extremo", diz Fasano.
Quando questionado se
essa dieta ajudar a perder peso, Fasano dá risada.
"Se você começa
a comer substitutos como cerveja sem glúten ou massa ou bolacha sem glúten, o
que vai acontecer é você engordar. Uma bolacha comum tem 70 calorias. Sem
glúten, o mesmo biscoito pode chegar a 210 calorias."
"Você tem que
substituir o glúten com algo que faça essa bolacha palatável, então você
precisa carregá-la de gordura e açúcar. Tenha em mente isso: um grama de
proteína contém quatro calorias. Um grama de gordura, nove."
Mas ele diz ser
possível perder peso com um dieta sem glúten ao trocar alimentos processados
(como biscoitos) por outros frescos, como verduras, frutas, peixe e carne.
Exageros e generalizações.
Dois livros muito
populares, Barriga de Trigo, de William Davis, e Grain Brain (Mente de Grãos,
em tradução livre) de David Perlmutter, têm sido especialmente importante para
alertar os americanos sobre os "perigos" do glúten.
Ambos fazem
referências à pesquisa de Fasano, mas o especialista diz que os dois livros
estão cheios de exageros e generalizações. "O glúten e os carboidratos
estão destruindo seus cérebros", se lê na obra de Perlmutter.
Frustrado com a
cobertura sensacionalista, Fasano publicou seu próprio livro no ano passado
Gluten Freedom (não lançado em português), co-escrito com Susie Flaherty.
Ele diz que comer
glúten não oferece risco a pessoas fora do espectro dos transtornos ligados ao
glúten - e a maior parte dos especialistas concorda com ele.
Outro livro pulicado
sobre o tema é The Gluten Lie (A Mentira do Glúten, em tradução livre), de Alan
Levinovitz. É estranho pensar que Levinovitz tenha entrado nesse debate, visto
que ele é um especialista em religião e literatura.
Mas ele diz que vê
essa moda contra o glúten como uma combinação entre os poderosos mitos de um
paraíso passado com uma atitude anticorporativa contra a indústria alimentícia.
Levinovitz diz que
não é a primeira vez que um tratamento para celíacos entra na moda. Já ocorreu
nas décadas de 1920 e 1930, quando médicos - que ainda não sabiam do papel do
glúten na doença - receitavam uma dieta de banana e leite, suplementada com
caldos, gelatina e quantidades pequenas de carne.
Muitos dos famosos
que abandonaram o glúten, como Gwyneth Paltrow, Miley Cyrus e Victoria Beckham,
dizem que eliminar a proteína de suas dietas não foi algo feito por diversão,
mas que têm intolerância.
"Os principais
defensores dessa dieta fazem isso porque ela genuinamente funcionou para
eles", diz Levinovitz. "Então talvez haja algumas pessoas que não
tenham sido diagnosticadas como celíacas ou alguém que não seja celíaco mas
tenha sensibilidade ao glúten. Mas essas histórias viraram uma boa de neve e
abarcaram toda uma comunidade de pessoas que pensam "ah, se funcionou para
o meu amigo, também vou tentar".
"E tem o efeito
placebo (psicolóogico), combinado com o fato de que você não está mais bebendo
cinco cervejas toda a noite, e por isso se sente melhor, e acha que tem a ver
com o glúten."
Em seu livro,
Levinovitz também fala do efeito "nocebo": a ideia de que se você
acredita que algo pode te fazer mal, isso pode realmente te causar efeitos
negativos.
Pode ser que grande
parte dos americanos estejam sob o que médicos chamam de "doença
sociogênica em massa" quando se trata de glúten?
Bom, o que se pode
dizer é que as pessoas não gostam que lhes digam que a doença está na cabeça
delas.
E Levinovitz sabia
que seria bastante criticado por seu livro. Mas não esperava a quantidade de
e-mails de ódio que recebeu.
"Se alguém diz:
'Olha, acabaram de descobrir que Plutão não é um planeta', ninguém se ofende,
apenas dizem: 'Ah, não? Genial!'". Mas ele diz que falar para as pessoas sobre
mitos da comida é como atacar a identidade delas.
E, para ele, a moda
da dieta sem glúten não é uma dieta sem perigos.
Muitos pacientes que
sofrem de distúrbios alimentares contam que começaram a ter problemas
justamente com as dietas que excluíam algum alimento.
Há provas que sugerem
que uma ansiedade extrema sobre o que comemos pode levar a sintomas que não são
tão diferentes daqueles da sensibilidade ao glúten.
Mas ao menos agora a
doença celíaca não é mais um tabu nem algo totalmente desconhecido.
À medida que cresce,
meu filho vai se beneficiar de uma quantidade jamais vista de produtos
alimentícios para os celíacos.
E também é fantástico
entrar em um restaurante e as pessoas saberem do que você está falando quando
explica que seu filho é celíaco.
Mas se por um lado eu
nunca recebo olhares tortos, eu às vezes pego uma troca de olhares sarcásticos
entre funcionários.
Quando minha mulher
explicou a doença de Sam para um chef, ele disse: "Oh, então ele não pode
mesmo comer glúten. A maioria das pessoas muda de ideia quando eu mostro as
opções para alérgicos e acaba pedindo algo do cardápio normal".
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