FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
Em termos sociais, há um aspecto relevante na ocorrência de crimes que provocam comoção dos cidadãos ou repercussão na mídia, pois são por meio deles que questões importantes acabam sendo provocadas.
Uma delas refere-se ao questionamento dos fatores que provocam a criminalidade. Por exemplo, no episódio ocorrido numa Universidade, em que uma aluna foi hostilizada por usar um vestido alegadamente curto —que em termos atuais não pode ser assim considerado— levantou a pergunta: como foi possível que estudantes perdessem sua perspectiva de cidadania e se transformassem numa massa coletiva, aos moldes de uma horda de bárbaros e provocassem um tumulto de reflexos criminosos, como foi visto em imagens na Internet?
Alguns outros fatores somam-se a esse fato específico e são aqueles que se referem ao local em que a ação, complexa em si mesma, ocorreu. Trata-se de uma região industrializada, um pólo econômico do qual emergiu até mesmo o atual Presidente de nosso estado e que representa simbolicamente a subida da classe trabalhadora ao poder.
Como num local com tais características, o qual, segundo modernas teorias sociológicas, seria o solo de fertilidade necessária ao desenvolvimento de uma consciência efetiva de participação social, poderia um grupo, provavelmente filhos de trabalhadores e famílias ligadas à atividade produtiva, se transformar de tal forma.
Em paralelo à questão da perda da alteridade, tratada no artigo da semana anterior, outras considerações sobre as causas da criminalidade se fazem necessárias. Tem-se que buscar respostas num modelo de análise o qual retrate a complexidade da dinâmica moderna de sociedade, que leve em conta elementos relacionados entre si não mais estaticamente, como pretendia a criminologia tradicional, que via no criminoso um ser irracional, ou seja, um sujeito cujo único problema era não saber utilizar a razão, mecanismo comum a todos os demais seres sociais.
O novo modelo precisa retratar o ser humano sob sua perspectiva de ser vivente integral, que é dotado de razão, mas que pode praticar ações as mais irracionais e que é influenciado e construído pelo meio em que vive, não como “vítima” da sociedade, mas como resultado de forças que nela habitam.
Significa isto ampliar os horizontes no sentido de não justificar somente a criminalidade com base na idéia de pobreza ou ausência de educação, num primeiro momento. Estes também são fatores, mas não isolados.
Para se buscar esse modelo, tenta-se examinar o que se pode chamar de dinâmica social, seu mecanismo de funcionamento e como essa mesma dinâmica pode indesejavelmente contribuir na alimentação de condutas delitivas.
Deve-se partir da análise da estrutura da sociedade como um complexo de forças, as quais podem ser agrupadas em dois sistemas menores ou dois subsistemas. Para facilitar, serão denominados de subsistema da cultura e subsistema da civilidade. Ambos realizam um processo de interferência mútua, imperceptível em termos diários, mas que atuam sintetizando forças próprias de modo intermitente. Não se trata da batida dialética marxista, nem mesmo aquela hegeliana, pois não se visa a um fim absoluto. Há, ao contrário, um movimento de forças que não se esgotam em si mesmas e que mantém a sociedade sempre viva, por assim se dizer.
Pode-se afirmar, para delimitar os campos dos dois subsistemas, que no subsistema da cultura encontram-se todos os projetos que uma dada sociedade possui, enquanto no subsistema civilidade, todos os objetos que uma sociedade consegue concretizar. Na cultura estão as idéias, as ideologias, enfim, o conjunto de tudo aquilo que dentro de uma sociedade tem força motriz mais abstrata. Na civilidade, estão a tecnologia, os produtos, as construções, os bens consumíveis, isto é, tudo aquilo que tenha força motriz concreta dentro do seio social. Desta relação entre projetos e objetos, nasce e se mantém uma sociedade.
No mundo moderno, no qual predomina um modelo capitalista de natureza consumista, os objetos compõem-se basicamente de bens destinados à aquisição e uso e os projetos são lastreados no desejo de possuir tais bens. Esta malha espalha-se em toda sociedade moderna dita normal, até mesmo por força da economia globalizada de mercado. Assim, todos os integrantes da sociedade são, de um modo ou outro, influenciados em sua vida por este fluxo dialético. Todos desejam e adquirem bens, independentemente da classe a que pertençam e os bens são produzidos para atender necessidades de classes distintas. Os cidadãos que obtêm recursos por canais socialmente adequados obtêm tais bens de maneira considerada lícita. Aqueles que não podem, não os obtêm de modo lícito. Aqui se inicia um outro movimento dialético.
Aqueles que não têm espaço para manutenção de vida chamada normal, ou seja, não conseguem se integrar no tecido social, acabam sendo empurrados para outra esfera social, a da chamada informalidade. Direcionados para atividades informais, acabam por adquirir bens também por vias da mesma natureza. Neste ambiente informal de trabalho, são criadas regras próprias de convívio social e o conjunto destas regras faz surgir uma sociedade paralela. Dentro desta, as condutas reiteradamente praticadas tornam-se práticas habituais e induzem ao nascimento de uma “cultura” da informalidade, na qual também são estabelecidos valores próprios. No momento em que é estabelecida esta cultura, o movimento dialético da informalidade se consolida e caminha em paralelo ao sistema político estabelecido pelo Estado.
O ponto fundamental é que dentre as atividades praticadas, algumas não são ilegais no sentido de constituírem crime, mas outras sim. E é exatamente aqui que, na sociedade moderna, nasce o problema, pois o crime participa como colaborador da estruturação do sistema informal descrito, uma vez que a atividade criminosa acaba por ser lucrativa, gerando uma economia própria e permitindo uma estrutura social paralela, como dito acima.
Assim, a dialética da dinâmica social alimenta a formação e a manutenção da criminalidade e não apenas a pobreza ou a ausência de educação. É uma estrutura complexa —e não fatores isolados— que compõe a criminalidade moderna, a qual, por sua vez, se consolida no momento em que, no dinamismo social, as regras estabelecidas numa prática informal e criminosa, dentro do sistema denominado civilidade, finalmente terminam por se reproduzir num sistema cultural, estabelecendo principalmente valores – ou um “ethos criminoso”.
Mas esta figura não é explicita, ela permanece latente, em convívio com o “ethos” social considerado normal. Quando certos mecanismos são acionados, permitem emergir esse “segundo ethos”, o qual se revela nas ações praticadas sob a perspectiva de ilegalidade, pois afrontam o modelo tido por normal. Como partem de um modelo subsidiário, oculto, mas presente, aqueles que praticaram a ação, enquanto a praticam e por algum tempo depois, não a consideram lesiva, não a percebem como tal.
Aqui a perspectiva se abre para se falar dos reflexos da ação criminosa e como ela se retroalimenta no mundo globalizado, mas é exigido outro texto sobre isso.
Como última palavra, a explicação inicial do motivo de falha do modelo de sanção penal adotado, que hoje visivelmente não funciona, porque tem por base a função de “dar exemplo”, com uma idéia de retribuição: pune-se porque se praticou o crime e para que não seja praticado por outros. Mesmo com a lei orientando para a chamada prevenção, nome técnico para a busca da chamada ressocialização, isto não é conseguido, porque é só uma nomenclatura distante da realidade. Mais uma vez, pede-se ao leitor outra oportunidade para se complementar tal argumento.
*** João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. Especialista em direito penal, pós-graduado em filosofia e mestre em filosofia do direito, foi delegado de Polícia e coordenador da Assessoria Jurídica da Febem. Atualmente é membro efetivo da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP, além de professor assistente e coordenador de núcleo de pesquisa da PUC-SP.
Uma delas refere-se ao questionamento dos fatores que provocam a criminalidade. Por exemplo, no episódio ocorrido numa Universidade, em que uma aluna foi hostilizada por usar um vestido alegadamente curto —que em termos atuais não pode ser assim considerado— levantou a pergunta: como foi possível que estudantes perdessem sua perspectiva de cidadania e se transformassem numa massa coletiva, aos moldes de uma horda de bárbaros e provocassem um tumulto de reflexos criminosos, como foi visto em imagens na Internet?
Alguns outros fatores somam-se a esse fato específico e são aqueles que se referem ao local em que a ação, complexa em si mesma, ocorreu. Trata-se de uma região industrializada, um pólo econômico do qual emergiu até mesmo o atual Presidente de nosso estado e que representa simbolicamente a subida da classe trabalhadora ao poder.
Como num local com tais características, o qual, segundo modernas teorias sociológicas, seria o solo de fertilidade necessária ao desenvolvimento de uma consciência efetiva de participação social, poderia um grupo, provavelmente filhos de trabalhadores e famílias ligadas à atividade produtiva, se transformar de tal forma.
Em paralelo à questão da perda da alteridade, tratada no artigo da semana anterior, outras considerações sobre as causas da criminalidade se fazem necessárias. Tem-se que buscar respostas num modelo de análise o qual retrate a complexidade da dinâmica moderna de sociedade, que leve em conta elementos relacionados entre si não mais estaticamente, como pretendia a criminologia tradicional, que via no criminoso um ser irracional, ou seja, um sujeito cujo único problema era não saber utilizar a razão, mecanismo comum a todos os demais seres sociais.
O novo modelo precisa retratar o ser humano sob sua perspectiva de ser vivente integral, que é dotado de razão, mas que pode praticar ações as mais irracionais e que é influenciado e construído pelo meio em que vive, não como “vítima” da sociedade, mas como resultado de forças que nela habitam.
Significa isto ampliar os horizontes no sentido de não justificar somente a criminalidade com base na idéia de pobreza ou ausência de educação, num primeiro momento. Estes também são fatores, mas não isolados.
Para se buscar esse modelo, tenta-se examinar o que se pode chamar de dinâmica social, seu mecanismo de funcionamento e como essa mesma dinâmica pode indesejavelmente contribuir na alimentação de condutas delitivas.
Deve-se partir da análise da estrutura da sociedade como um complexo de forças, as quais podem ser agrupadas em dois sistemas menores ou dois subsistemas. Para facilitar, serão denominados de subsistema da cultura e subsistema da civilidade. Ambos realizam um processo de interferência mútua, imperceptível em termos diários, mas que atuam sintetizando forças próprias de modo intermitente. Não se trata da batida dialética marxista, nem mesmo aquela hegeliana, pois não se visa a um fim absoluto. Há, ao contrário, um movimento de forças que não se esgotam em si mesmas e que mantém a sociedade sempre viva, por assim se dizer.
Pode-se afirmar, para delimitar os campos dos dois subsistemas, que no subsistema da cultura encontram-se todos os projetos que uma dada sociedade possui, enquanto no subsistema civilidade, todos os objetos que uma sociedade consegue concretizar. Na cultura estão as idéias, as ideologias, enfim, o conjunto de tudo aquilo que dentro de uma sociedade tem força motriz mais abstrata. Na civilidade, estão a tecnologia, os produtos, as construções, os bens consumíveis, isto é, tudo aquilo que tenha força motriz concreta dentro do seio social. Desta relação entre projetos e objetos, nasce e se mantém uma sociedade.
No mundo moderno, no qual predomina um modelo capitalista de natureza consumista, os objetos compõem-se basicamente de bens destinados à aquisição e uso e os projetos são lastreados no desejo de possuir tais bens. Esta malha espalha-se em toda sociedade moderna dita normal, até mesmo por força da economia globalizada de mercado. Assim, todos os integrantes da sociedade são, de um modo ou outro, influenciados em sua vida por este fluxo dialético. Todos desejam e adquirem bens, independentemente da classe a que pertençam e os bens são produzidos para atender necessidades de classes distintas. Os cidadãos que obtêm recursos por canais socialmente adequados obtêm tais bens de maneira considerada lícita. Aqueles que não podem, não os obtêm de modo lícito. Aqui se inicia um outro movimento dialético.
Aqueles que não têm espaço para manutenção de vida chamada normal, ou seja, não conseguem se integrar no tecido social, acabam sendo empurrados para outra esfera social, a da chamada informalidade. Direcionados para atividades informais, acabam por adquirir bens também por vias da mesma natureza. Neste ambiente informal de trabalho, são criadas regras próprias de convívio social e o conjunto destas regras faz surgir uma sociedade paralela. Dentro desta, as condutas reiteradamente praticadas tornam-se práticas habituais e induzem ao nascimento de uma “cultura” da informalidade, na qual também são estabelecidos valores próprios. No momento em que é estabelecida esta cultura, o movimento dialético da informalidade se consolida e caminha em paralelo ao sistema político estabelecido pelo Estado.
O ponto fundamental é que dentre as atividades praticadas, algumas não são ilegais no sentido de constituírem crime, mas outras sim. E é exatamente aqui que, na sociedade moderna, nasce o problema, pois o crime participa como colaborador da estruturação do sistema informal descrito, uma vez que a atividade criminosa acaba por ser lucrativa, gerando uma economia própria e permitindo uma estrutura social paralela, como dito acima.
Assim, a dialética da dinâmica social alimenta a formação e a manutenção da criminalidade e não apenas a pobreza ou a ausência de educação. É uma estrutura complexa —e não fatores isolados— que compõe a criminalidade moderna, a qual, por sua vez, se consolida no momento em que, no dinamismo social, as regras estabelecidas numa prática informal e criminosa, dentro do sistema denominado civilidade, finalmente terminam por se reproduzir num sistema cultural, estabelecendo principalmente valores – ou um “ethos criminoso”.
Mas esta figura não é explicita, ela permanece latente, em convívio com o “ethos” social considerado normal. Quando certos mecanismos são acionados, permitem emergir esse “segundo ethos”, o qual se revela nas ações praticadas sob a perspectiva de ilegalidade, pois afrontam o modelo tido por normal. Como partem de um modelo subsidiário, oculto, mas presente, aqueles que praticaram a ação, enquanto a praticam e por algum tempo depois, não a consideram lesiva, não a percebem como tal.
Aqui a perspectiva se abre para se falar dos reflexos da ação criminosa e como ela se retroalimenta no mundo globalizado, mas é exigido outro texto sobre isso.
Como última palavra, a explicação inicial do motivo de falha do modelo de sanção penal adotado, que hoje visivelmente não funciona, porque tem por base a função de “dar exemplo”, com uma idéia de retribuição: pune-se porque se praticou o crime e para que não seja praticado por outros. Mesmo com a lei orientando para a chamada prevenção, nome técnico para a busca da chamada ressocialização, isto não é conseguido, porque é só uma nomenclatura distante da realidade. Mais uma vez, pede-se ao leitor outra oportunidade para se complementar tal argumento.
*** João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. Especialista em direito penal, pós-graduado em filosofia e mestre em filosofia do direito, foi delegado de Polícia e coordenador da Assessoria Jurídica da Febem. Atualmente é membro efetivo da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP, além de professor assistente e coordenador de núcleo de pesquisa da PUC-SP.
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