Estudos conduzidos no
Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) avaliaram que a
capacidade das células tumorais de produzirem melatonina
pode
se tornar uma estratégia inovadora para medir o grau de malignidade em alguns tipos
de câncer, entre eles tumores do Sistema Nervoso Central
(SNC), pulmão, intestino, pâncreas e bexiga.
O grupo, coordenado
pela professora Regina Pekelmann Markus, mostrou que o nível de expressão dos
genes codificadores das enzimas que sintetizam e degradam melatonina permite
predizer que tumores menos agressivos produzem maior quantidade desse hormônio.
As análises revelaram
ainda que a maior produção local se correlacionava com uma maior sobrevida dos
pacientes. Markus contou para a Agência FAPESP que eles estão avaliando a
possibilidade de criar um kit para medir o nível de melatonina em amostras de
tecido tumoral obtidas por biópsia.
Segundo a professora,
além de auxiliar no prognóstico da doença, a tecnologia abriria caminho para
novas abordagens terapêuticas. Os trabalhos da pesquisadora com melatonina
tiveram início ainda nos anos 1990.
Por meio de estudo com
roedores, ela demonstrou que o hormônio que sinaliza para o organismo que está
escuro e, portanto, é hora de descansar poderia ser produzido em outros locais
do organismo além da glândula pineal, situada dentro do cérebro, como até então
era conhecido. Demonstrou ainda a importância da produção periférica de
melatonina na regulação de processos inflamatórios em diferentes contextos
fisiológicos e fisiopatológicos.
A essa comunicação
bidirecional entre a glândula pineal e o sistema imune o grupo da USP chamou de
eixo imune-pineal. Trabalhos posteriores revelaram que a transição entre a
síntese pineal e extrapineal de melatonina é regulada por um complexo proteico
chamado NF-κB (fator nuclear kappa B), um conhecido mediador inflamatório.
Uma revisão sobre o
tema, reunindo os principais achados de mais de 20 anos de pesquisa, foi
publicada em 2017 no British Journal of Pharmacology. Entre os autores
principais, além de Markus, estão Pedro Augusto Carlos Magno Fernandes e
Gabriela Sarti Kinker, ambos do IB-USP.
Produção periférica e
câncer.
De acordo com Markus,
há casos em que o organismo não consegue, por algum motivo, voltar à condição
fisiológica e a produção periférica de melatonina é mantida. Ou então a
produção pela pineal não é recuperada e o organismo, que aparentemente está
bem, fica mais propenso ao surgimento de doenças. “Foi com esse raciocínio que
resolvemos investigar a relação entre melatonina e câncer”, disse.
O estudo começou com a
observação de amostras de gliomas – um tipo de câncer que afeta o sistema
nervoso central – obtidos de pacientes envolvidos em um estudo coordenado por
Sueli Mieko Oba Shinjo, da Faculdade de Medicina da USP.
“Decidimos avaliar, nas
células tumorais, como estava a expressão das duas enzimas-chave para a síntese
de melatonina: a ASMT e a AANAT. Chamou a nossa atenção o fato de a expressão
de ASMT estar muito baixa, mas o número de amostras era pequeno e decidimos
investigar em linhagens já estabelecidas de gliomas”, disse Markus.
O grupo então notou
que, enquanto as linhagens mais agressivas (gliomas de grau 4) praticamente não
tinham secreção local de melatonina, a expressão das enzimas de síntese era
maior em gliomas de grau 1 e 2, considerados de menor malignidade.
O passo seguinte foi
analisar dados de tumores depositados no banco público mantido pelo Cancer
Genome Atlas (TCGA), nos Estados Unidos. Além de informações sobre expressão
gênica no tecido tumoral, o repositório também oferece acesso a dados clínicos,
permitindo aos pesquisadores fazer correlações entre os achados sobre a
expressão da melatonina e o desfecho clínico de cada paciente.
“Investigamos a síntese
de melatonina em praticamente todos os tipos de tumores depositados no banco.
Para isso, criamos um índice com base na expressão do gene ASMT e também do
gene CYP1B1, que codifica a principal enzima responsável por degradar a
melatonina [se esse gene estiver muito expresso o hormônio será rapidamente
metabolizado e o nível de melatonina será baixo na célula]”, disse Markus.
O estudo mostrou que, quanto
maior era o índice (ou seja, maior era a produção preditiva local de
melatonina), menos agressivo era o glioma e maior era o tempo de sobrevida dos
pacientes. Resultados semelhantes foram observados para outros tipos de
tumores sólidos como pulmão, pâncreas, colorretal e bexiga, mas não em tumores
não sólidos como a leucemia e os linfomas.
Os resultados da
investigação com dados de gliomas foram publicados em 2016 no Journal of
Pineal Research e compõem a tese de doutorado de Kinker, que, atualmente,
continua os estudos do sistema melatonérgico em gliomas no Weizmann
Institute of Science, em Israel.
“Partimos então para
investigar por quais mecanismos a melatonina estava agindo nas células do
câncer e, atualmente, estamos em processo de patenteamento de métodos
prognósticos e agentes melatonérgicos para o tratamento de alguns tumores
sólidos”, disse Markus.
Segundo a pesquisadora,
a melatonina em si não poderá ser usada no tratamento porque atua por
múltiplos mecanismos de ação e pode não favorecer a contenção do tumor em
alguns pacientes.
“É fundamental conhecer
as possíveis variáveis do sistema antes de intervir, pois são diferentes em
cada paciente. Acreditamos que o ideal seja uma terapia individual precedida
por exame laboratorial mostrando que o tratamento não será prejudicial. Por
esse motivo, estamos trabalhando no desenvolvimento de um kit para avaliar a
produção de melatonina no tecido tumoral. Acreditamos que seja possível fazer
um teste barato, semelhante ao usado para medir glicose no sangue”, disse a
professora do IB-USP.
Os pesquisadores
ressaltam, contudo, que antes de lançar a tecnologia para avaliação do
prognóstico será preciso validá-la em amostras de biópsia dos diversos tipos de
tumores sólidos estudados, processo que deve demorar cerca de três anos. Ainda
será preciso estabelecer o melhor processo para fazer essa análise e uma forma
de adaptar a metodologia para uso comercial.
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