Qualquer diferença serve para separar
alunos dos colegas e transformá-los em alvos potenciais de bullying. Porém,
alergia severa à comida é uma vulnerabilidade singular. Basta um almoço ou
festa de aniversário para as outras crianças saberem quais colegas não podem
comer nozes, ovos, leite ou uma quantidade mínima de trigo. Pode demorar até
eles compreenderem como é assustador viver com uma alergia que pode ser letal.
De forma surpreendente, os colegas podem
se aproveitar dessa vulnerabilidade, tramando trocar o lanche para ver se, por
exemplo, a criança fica enjoada ou cuspir leite em seu rosto para provocar uma
rápida reação anafilática.
Segundo pesquisa recente com 251
conjuntos de pais e filhos com alergias a alimentos, publicada na revista
"Pediatrics" no mês de janeiro, praticamente um terço das crianças
relatou ter sofrido bullying por causa das alergias. Os pais somente sabiam do
comportamento ameaçador em metade das vezes.
O médico Robert Wood, diretor de alergia
pediátrica do Centro Infantil Johns Hopkins, em Baltimore, escuta relatos muito
frequentes de intimidação dos pacientes e dos pais. "Na semana passada,
uma criança teve o rosto lambuzado com creme de amendoim, colocando-a em risco.
Geralmente, o bullying não é tão radical, mas o fenômeno sempre existe."
Agora, no entanto, a questão está
começando a chamar a atenção. Em maio, o Food Allergy Research and Education,
grupo sem fins lucrativos de McLean, Virgínia, divulgou um comunicado de
serviço público destacando o tema com um estudante lamentando o fato de a
cantina da escola ser um "lugar assustador". O vídeo teve mais de 17
mil visualizações no YouTube, tendo sido exibido na rede de televisão CW,
levando dezenas de pais a contar episódios inquietantes na página do grupo no
Facebook.
"O bullying nunca deveria ser visto
como um rito de passagem", afirmou John Lehr, diretor-presidente do grupo.
"Nunca é uma piada, mas a intimidação via alergia alimentar nunca é piada
porque alguém pode terminar no pronto-socorro."
O Centro Médico Infantil Nacional, de
Washington, acabou de contratar um psicólogo para participar do programa de
alergia alimentar, em parte para ajudar os pacientes jovens que se sentem
isolados ou estão sofrendo intimidação. De acordo com o médico Hemant P.
Sharma, diretor do programa, um terço dos pacientes já relatou casos de
bullying.
Mês sim, mês não, uma criança conta ter
sido forçada a comer um alimento alergênico. "Ainda que seja apenas uma
criança que se sinta isolada por causa da alergia alimentar, o fato contribui
para o fardo emocional."
Na verdade, algumas crianças com alergia
alimentar ficam aflitas ou ansiosas. Wood costuma mandar a criança falar com um
psicólogo "porque não tocam em maçaneta nem usam o banheiro por temerem
uma exposição inadvertida ao alimento alergênico".
O Instituto Jaffe de Alergia Alimentar,
do Centro Médico Mount Sinai, Manhattan, não apenas oferece orientação
psicológica às crianças e aos pais depois do episódio de bullying como também
convoca os diretores em nome do paciente.
Nem sempre as vítimas da intimidação
alertam os pais. Porém, Miles Monroe, de 8 anos, de Bethesda, Maryland, que é
alérgico a leite, ovos e trigo, contou aos seus pais que não se sentia à
vontade na cantina depois que um colega segurou uma embalagem do chocolate Kit
Kat perto do rosto e ficou cantando "você não pode comer isto".
Miles não ficou "com medo de ficar
doente por causa disso, mas se sentiu agredido", contou Courteney Monroe,
44 anos, sua mãe e diretora de marketing do canal National Geographic. A
compreensiva professora de Miles arrancou o mal pela raiz ao falar para o
agressor que seria como se ele não pudesse comer o alimento preferido, fosse
provocado com ele ou terminasse no hospital se o ingerisse (até então, esse
resultado era inconcebível).
Nem todo professor se mostra tão
preocupado. "A intimidação relacionada à alergia alimentar nem sempre vem
dos colegas, mas de adultos, como os professores", afirmou Elisabeth
Stieb, enfermeira do Centro de Alergia Infantil do Hospital Geral de
Massachusetts, em Boston.
Pelo menos 15 estados americanos têm
diretrizes para a administração da alergia alimentar nas escolas, e muitos
cuidam de forma específica do bullying. As normas do Texas pedem
"tolerância zero à intimidação ligada à alergia alimentar". Já as do
Arizona sugerem que os responsáveis sejam treinados a "intervir
rapidamente para ajudar a impedir a troca de alimentos ou bullying" na
cantina.
"Bullying e provocação comum não são
a mesma coisa. O que os distingue não é apenas a força diferencial entre as
crianças, mas alguém propositalmente tentando prejudicar outro", afirmou
Rashmi Shetgiri, pediatra e pesquisadora do Centro Médico Southwestern da
Universidade do Texas.
Da mesma forma que os agressores
cibernéticos usam equipamentos eletrônicos para machucar, os intimidadores da
alergia alimentar "reafirmam a força utilizando o alimento
alergênico", finalizou Shetgiri.
Nenhum comentário:
Postar um comentário