FONTE: *** , (http://noticias.uol.com.br).
Foi pouco antes do
fim da relação sexual que a advogada carioca Priscila (nome fictício) percebeu
que seu parceiro havia removido o preservativo sem avisá-la.
O casal havia se
conhecido semanas antes e concordado em fazer sexo protegido.
"Fiz um
escândalo e minha reação inicial foi dar parte dele na delegacia. Além de
irritada, fiquei muito triste com a desonestidade. Ele se justificou dizendo
que ficou com medo de perder a ereção", conta ela à BBC Brasil.
Segundo a advogada, as
semanas seguintes foram "tensas", à espera do resultado de exames
médicos do parceiro.
"Como se tratava
de um parceiro casual, fiquei com medo de contrair alguma doença. Felizmente,
nada aconteceu. Eu o perdoei e depois fiquei muito chateada comigo mesma porque
encarei a situação como 'normal'. Acabei tendo de levar isso para
terapia", acrescenta.
De tão frequentes,
casos como o de Priscila tornaram-se objeto de pesquisa nos Estados Unidos e
ganharam até um termo próprio em inglês - "stealthing" (de "stealth" ou "furtivo"),
quando um dos parceiros remove o preservativo durante a relação sexual sem o
consentimento do outro.
Um estudo recente
publicado no periódico Columbia Journal of Gender and Law, que trata de questões legais relativas a gênero, revelou que
se trata de um "problema crescente" no país, e com maior incidência
em casais heterossexuais.
"Entrevistas com
vítimas indicam que a prática é comum entre jovens sexualmente ativos",
diz a autora da pesquisa, Alexandra Brodsky, no estudo.
"É terrível escrever
sobre uma forma de violência de gênero pouco reconhecida e ouvir um coro de
mulheres dizendo que passou por situações desse tipo", acrescenta ela.
Brodsky diz ainda que
"além do medo de resultados negativos específicos como gravidez e DSTs
(Doenças Sexualmente Transmissíveis), todas as vítimas consideraram a remoção
do preservativo sem seu consentimento como uma violação humilhante e
desempoderadora do acordo sexual".
Violência sexual.
O assunto chegou a
levantar questionamentos sobre se a prática poderia ser considerada um crime
sexual e, em última instância, estupro.
No estudo realizado
por Brodsky, uma das vítimas descreveu o stealthing como um "quase estupro".
Outra chamou de
"flagrante violação do que tínhamos concordado".
Alexandra Brodsky
acredita ser necessária criação de legislação específica que coíba a prática e
à qual as vítimas do "stealthing"
possam recorrer.
Em fóruns online nos
Estados Unidos, homens incentivam uns ao outros a cometer a prática sob a
justificativa de que seria direito deles "espalhar seus genes",
acrescenta a pesquisa.
Para a advogada
britânica Sandra Paul, especialista em crimes sexuais do escritório de
advocacia Kingsley Napley, sediado no Reino Unido, quem faz o stealthing
estaria "potencialmente cometendo um estupro".
Mas, de acordo com a
lei brasileira, a prática não poderia ser considerada estupro, afirmaram
especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
Isso porque, segundo
o artigo 213 do Código Penal, estupro consiste em "constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou
permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".
"Não existe essa
previsão de 'furtividade' na nossa lei", explica o defensor público Saulo
Brum Leal Júnior, da Assessoria Subdefensoria Institucional da Defensoria
Pública do Rio Grande do Sul. "Para que um crime seja enquadrado como
estupro, é preciso que o ato sexual tenha ocorrido mediante grave ameaça ou
violência."
A defensora pública
Arlanza Maria Rodrigues Rebello, coordenadora do Nudem (Núcleo de Defesa dos
Direitos da Mulher) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, concorda. Ela diz
considerar que o stealthing não
seria estupro, mas "uma deslealdade do relacionamento".
"O fato de tirar
o preservativo sem a autorização da mulher, por si só, não significa que tenha
ocorrido estupro porque não houve uso de violência ou ameaça para que a relação
sexual fosse obtida. Seria uma deslealdade do relacionamento, como se a mulher,
por exemplo, parasse de tomar pílula anticoncepcional e não avisasse ao
parceiro", explica.
Para a advogada Ana
Paula Braga, sócia da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas e especialista
na defesa dos direitos das mulheres, a remoção do preservativo seria, no aspecto
moral, um estupro, "se formos partir da visão de que não houve
consentimento quanto ao sexo desprotegido".
Assim como outros
especialistas, ela ressalva, contudo, que, no aspecto legal, esse tipo de crime
só ocorre se houver "violência ou ameaça".
"Nosso direito
penal é muito específico e, ainda que a interpretação da lei tenha mudado ao
longo do tempo, não poderíamos considerar o stealthing como estupro se
analisarmos friamente a letra da lei. De qualquer forma, trata-se de uma
violência de gênero, pois o homem coloca o prazer dele acima da saúde da
parceira", explica.
Braga diz já ter
atendido uma cliente que passou pela situação, mas o caso não avançou porque os
prazos legais já haviam se esgotado.
Ela acrescenta que
não há jurisprudência no Brasil, tampouco estatísticas oficiais sobre o
assunto.
Mas, em janeiro deste
ano, um homem foi condenado por estupro na Suíça depois de remover o
preservativo sem o consentimento da parceira. A Justiça entendeu que a mulher
teria recusado manter a relação sexual se soubesse que estava fazendo sexo
desprotegido.
Alternativas legais.
Embora acreditem que
a prática não possa ser enquadrada como estupro, os especialistas afirmam que
existem alternativas legais às mulheres que se sintam vítimas dessa situação.
Eles citam os artigos
130 (perigo de contato venéreo), 131 (perigo de contágio de moléstia grave) e
215 (violência sexual mediante fraude) do Código Penal brasileiro, uma vez que
o sexo foi de forma desprotegida e não consensual.
Os especialistas
dizem também ser possível entrar com uma ação cível, e não criminal, contra o
acusado.
"Seria uma ação
reparatória pelo dano causado, como, por exemplo, uma gravidez
indesejada", assinala Leal Júnior, da Defensoria Pública do Rio Grande do
Sul.
Desafio.
Braga, da Braga &
Ruzzi Sociedade de Advogadas, ressalva, contudo, que, mesmo em casos de
estupro, reunir provas é um "desafio" para as mulheres.
Ela lembra que apenas
8% dos estupros se tornam efetivamente condenações.
"Crimes sexuais
não deixam provas. Especialmente quando há violência psicológica. A maior parte
dos estupros ocorre com um agressor que é conhecido da vítima", diz.
"Mas isso não
pode ser visto como um empecilho para as mulheres denunciarem", conclui.
*** Com
reportagem de Jim Connolly, da BBC Newsbeat .
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