FONTE:, Luís Guilherme Barrucho - @luisbarrucho, Da BBC Brasil em Londres (noticias.uol.com.br).
Conhecidos
mundialmente pela simpatia com que tratam o visitante estrangeiro, os brasileiros
são menos solidários com seus semelhantes -- pelo menos quando o assunto é doar
sangue.
Dados da ONU apontam
que o Brasil, apesar de coletar o maior volume em termos absolutos na América
Latina, doa proporcionalmente menos do que outros países da região, como
Argentina, Uruguai ou Cuba.
As estimativas,
referentes ao período entre 2012 e 2013 e obtidas com exclusividade pela
reportagem da BBC Brasil, fazem parte de um estudo ainda não publicado pela
OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), braço da OMS (Organização Mundial de
Saúde) nas Américas.
Quando se analisa a
totalidade de doações no continente americano, o país também fica atrás de
Estados Unidos e Canadá.
O estudo também
revela outra particularidade da doação de sangue no Brasil: seis em cada dez
doadores (59,52%) são voluntários (ou espontâneos, aqueles que doam com
frequência sem se importar com quem vai receber o sangue), proporção inferior à
de Cuba (100% são voluntários), Nicarágua (100%), Colômbia (84,38%) e Costa
Rica (65,74%).
O restante (40,48%) é
formado por doadores de reposição, ou seja, aqueles que doam por razões
pessoais (quando um amigo ou parente precisa de sangue). Especialistas da área
dizem preferir os doadores voluntários aos de reposição pois conseguem ter
maior controle sobre a procedência e qualidade do sangue.
Segundo o Ministério
da Saúde, no ano passado, foram coletadas 3,7 milhões de bolsas de sangue, 200
mil a mais do que em 2013 -- uma alta de 4,55%. Já as transfusões cresceram
6,8% no período (3,3 milhões em 2014 contra 3 milhões em 2013).
Ainda assim, em
termos gerais, somente 1,8% da população brasileira entre 16 e 69 anos doam
sangue -- a ONU considera "ideal" uma taxa entre 3% a 5%, caso do
Japão, dos Estados Unidos e de outras nações desenvolvidas.
Isso não significa,
por outro lado, que o Brasil doe "pouco", mas sim que poderia
"doar mais", argumentam especialistas do setor da saúde à BBC Brasil.
"Não há notícia
de que está faltando sangue ou de que cirurgias estão sendo suspensas por causa
disso", diz Dimas Tadeu Covas, diretor-presidente da Fundação Hemocentro
de Ribeirão Preto. "Mas sem dúvida alguma as doações poderiam aumentar,
especialmente em períodos do ano em que o ritmo delas se reduz
significativamente", acrescenta.
A meta agora, segundo
o Ministério da Saúde, é ampliar o número de doações dos atuais 1,8% da
população para algo em torno de 2,2% a 2,3% nos próximos cinco anos.
Mas para alcançar tal
objetivo será preciso enfrentar desafios que ainda atravancam o potencial das
doações.
Confira quais são eles:
1) Falta de
conscientização.
Especialistas apontam
a falta de conscientização da população como um dos principais limitadores para
o aumento da doação de sangue no Brasil.
Eles defendem que
campanhas de incentivo à doação sejam feitas desde os primeiros anos de vida e
que o assunto seja discutido nas escolas para reverter o atual cenário.
"O Brasil não se
prepara para captar o doador desde criança. Sem essa política, não construímos
o doador do futuro. É preciso formarmos doadores com responsabilidade social
real", opina Yêda Maia de Albuquerque, presidente do Hemope (Fundação de
Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco), o principal do Nordeste brasileiro.
Yêda queixa-se da
falta de doadores voluntários, ou seja, aqueles que doam frequentemente sem se
importar com quem vai receber o sangue.
"Tenho muita
doação de reposição (pessoas que doam para parentes e familiares em caso de
urgência), o que não é ideal. Já o doador voluntário aumenta a qualidade do
produto que a gente oferece, pois conseguimos monitorá-lo", acrescenta.
Para Tadeu, da
Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto, o entendimento de que a doação de sangue
seja um ato "social e contínuo" ainda não está totalmente presente na
mentalidade do brasileiro.
"É preciso um
esforço educacional em escolas e por meio de campanhas públicas para garantir
que as pessoas entendam a necessidade e se disponham a doar sangue
regularmente".
Além disso, de acordo
com os especialistas, muitas pessoas ainda buscam doar sangue com o intuito de
"obter vantagens".
"Tem gente que
vem aqui com o simples objetivo de ganhar o dia de folga -- previsto em lei. Ou
mesmo para fazer um exame laboratorial e confirmar se tem alguma doença, como o
HIV (vírus que transmite a Aids)", admite Joselito Brandão, diretor médico
do Instituto HOC de Hemoterapia, ligado ao Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São
Paulo.
2) Estigma.
Segundo Naura Faria,
chefe de atendimento ao doador do HemoRio, hemocentro coordenador do Estado do
Rio de Janeiro, a doação de sangue no Brasil ainda é cercada de
"mitos".
"Infelizmente,
ainda existem alguns mitos em relação à doação de sangue. Há pessoas que
acreditam que se doarem uma vez, vão ter de doar sempre. Outras acham que doar
sangue engorda. Existem ainda aquelas que temem contrair alguma doença
infecciosa durante a coleta", enumera.
"É preciso
desfazer esses mitos e informar a população sobre os benefícios da
doação", argumenta.
3) Herança
cultural.
Para Júnia Guimarães
Mourão, presidente da Fundação Hemominas, hemocentro coordenador do Estado de
Minas Gerais, o volume de sangue doado está relacionado "à cultura dos
países".
"Diferentemente
de países desenvolvidos, como o Japão ou os Estados Unidos, o Brasil não se
envolveu em grandes guerras ou passou por grandes catástrofes naturais, que,
acredito, podem ter criado em suas sociedades a compreensão da importância da
doação de sangue.
Ainda sob o ponto de
vista histórico, ela lembra que até a década de 80, o Brasil remunerava
doadores, prática que se tornou proibida pela Constituição de 1988, o que, em
sua opinião, "levou a sociedade a não se envolver com a necessidade de
realizar doações para garantir o tratamento de quem precisa".
"Nesses quase 30
anos, temos visto mudanças, mas ainda há muito que caminhar", diz.
4)
Deficiência estrutural.
Segundo
especialistas, não basta apenas elevar o volume de doações, sem aumentar a
"eficiência do produto".
"Precisamos
minimizar a possibilidade de um descarte eventual do sangue já que se trata de
um material difícil de ser acondicionado", explica Yêda Maia de
Albuquerque, do Hemope.
Ela diz que muitos
dos hospitais do Nordeste não têm as chamadas "agências
transfusionais", espécie de filial dos hemocentros dentro dos centros
médicos. Cabe a elas gerenciar o estoque das bolsas de sangue e fornecer
assessoria técnica.
"Imagine que o
paciente que deveria receber uma bolsa de sangue venha a falecer. Se não
soubermos disso, liberamos o material e ele será perdido. Por essa razão,
quando não há essas agências, que funcionam como uma comunicação entre o
hemocentro e o hospital, não tenho o alcance dessas condições",
acrescenta.
Para Tadeu, da
Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto, o problema central está no "financiamento".
"Os hemocentros
trabalham numa lógica de financiamento que impede o oferecimento de serviços.
Não há recursos para investir em agências transfusionais na maioria dos
hospitais. Enfrentamos desafios não só na parte de capilarização quanto no controle
de qualidade", afirma.
"Como resultado,
a heterogeneidade do serviço é muito grande. Temos sangue produzido em
hemocentros que poderia ser tranquilamente usado nos Estados Unidos e na
Europa; outro sem a mesma qualidade do ponto de vista técnico. Tudo isso
decorre não só das dimensões continentais do país, mas também da insuficiência
do financiamento", explica.
Outra barreira,
aponta Faria, do HemoRio, envolve a locomoção do doador até o centro de doação.
"Temos apenas
duas unidades móveis, capazes de fazer a coleta junto a potenciais
doadores", lamenta.
5) Normas e
proibições.
As normas e
proibições -- muitas delas polêmicas -- também são consideradas por muitos um
entrave ao aumento no número de doações no país.
Até bem pouco tempo,
por exemplo, segundo contam os especialistas, menores de 18 e maiores de 65
anos eram proibidos de doar. Desde novembro de 2013, a faixa etária passou de
16 a 69 anos.
"É mais fácil
colocar regras mais gerais para não cometer o equívoco de deixar a
particularidade ser avaliada caso a caso", explica Tadeu, da Fundação
Hemocentro de Ribeirão Preto, acrescentando que as decisões são baseadas em
"estudos epidemiológicos". "Sempre temos de trabalhar com o
menor risco possível".
"Mas as
autoridades que deveriam estar fazendo revisões periódicas dessas orientações
nem sempre as fazem", argumenta.
"No caso do
Brasil, as regras são similares às vigentes nos Estados Unidos e na
Europa", lembra Tadeu.
Uma dessas regras,
por exemplo, impede pessoas que tenham permanecido mais de três meses, de forma
cumulativa, no Reino Unido ou na Irlanda, entre 1980 e 1996. O veto foi
motivado pela Doença de Creutzfeldt-Jakob, cuja variante ficou conhecida como
"doença da vaca louca".
A proibição, no
entanto, não vigora na Inglaterra e no País de Gales, segundo confirmou o NHS,
o SUS britânico, à reportagem da BBC Brasil.
Outro veto polêmico
envolve homens que se relacionaram sexualmente com outros homens no período de
12 meses anteriores à coleta. Para ativistas de direitos LGBT, a norma é
"discriminatória".
"O que deveria
ser levado em consideração é o comportamento de risco e não a identidade
sexual. Por que um gay que tenha um parceiro fixo não pode doar?",
questiona Welton Trindade, ativista LGBT e coordenador de mídia do grupo
Estruturação, sediado em Brasília.
Na América Latina,
México, Chile e Uruguai já permitem a doação de sangue por "homens que se
relacionaram com homens".
Outro lado.
Segundo o Ministério
da Saúde, o Brasil não doa "nem muito nem pouco, mas o suficiente".
"Não podemos
colher mais do que a necessidade, senão desperdiçamos um bem tão
precioso", afirma à BBC Brasil João Paulo Baccara, coordenador da área de
sangue e hemoderivados do Ministério da Saúde.
Baccara admite ser
"crescente" a demanda por sangue "devido ao envelhecimento da
população e ao aumento da complexidade da medicina", mas diz que órgão vem
atuando para elevar o número de doações.
"Não se trata de
captar por captar, mas captar sangue de qualidade. Devemos trabalhar, sobretudo
a consciência das pessoas".
Nenhum comentário:
Postar um comentário